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Pensando um País — [9] Brasileiro Hóspede Alheio
Pensando um País — [9] Brasileiro Hóspede Alheio

PENSANDO UM PAÍS – PARTE 9

 

O BRASILEIRO:  HÓSPEDE DO ALHEIO

 

Em 1924, Oswald de Andrade lançou o MANIFESTO DA POESIA PAU-BRASIL.  Nele, combinava a experiência internacional, sobretudo parisiense, e a redescoberta do próprio país.  Em alguma medida, sua reflexão sobre a antropofagia permaneceu marcada por essa oscilação.  Trata-se de autêntico vaivém existencial, no fundo, a contribuição mais importante de Oswald ao entendimento da cultura brasileira.

  

No manifesto de 1924, a principal questão dizia respeito à posição da arte nacional num contexto que hoje chamaríamos de global.  Problema sensível para artistas e intelectuais de culturas não hegemônicas.  Viajante contumaz, desde 1912, em sua primeira viagem à Europa, Oswald familiarizou-se com as novidades das artes e do pensamento da época.

 

As vanguardas das décadas iniciais do século 20 fizeram do “primitivismo” um dos eixos de sua visão do mundo.  Oswald compreendeu de imediato as consequências desse gesto, celebrando “a coincidência da primeira construção brasileira no movimento de reconstrução geral.  Poesia Pau-Brasil”.  A simultaneidade entre o alheio – o universo europeu e norte-americano – e o próprio – a circunstância local – inaugurava uma possibilidade única para inverter os papéis no sistema internacional de trocas simbólicas.

  

Nesse horizonte, a poesia brasileira deixaria de orientar-se pela “importação”, inaugurando um novo instante:  “E a Poesia pau-Brasil, de exportação”.  A ironia é saborosa:  se o primeiro produto extraído do país foi uma matéria-prima, a ser processada na Europa, desta vez, o “produto” a ser exportado seria um corpus poético que tanto assimilou os elementos estrangeiros quanto se beneficiou dos traços da cultura nacional.

 

Se, no caso europeu, o primitivismo era uma experiência, digamos, livresca, para um poeta latino-americano, pelo contrário, constituía uma vivência cotidiana.  Destaque-se o ímpeto resultante da convergência de tempos históricos distintos, convertido por Oswald em estímulo estético:  “Temos a base dupla e presente – a floresta e a escola”.  Simultaneidade do não-simultâneo, portanto, cuja força explodiu na fórmula do MANIFESTO ANTROPÓFAGO, devidamente reciclada do conde de Keyserling:  o antropófago como um triunfante bárbaro tecnizado.

  

Em 1928, com o MANIFESTO ANTROPOFAGO, a reflexão oswaldiana acerca da cultura nacional assumiu um caráter propriamente antropológico, sintetizado na frase decisiva:  “Só me interessa o que não é meu.  Lei do homem.  Lei do antropófago”.

 

A ideia-força da antropofagia pouco tem a ver com a busca de um caráter nacional autocentrado.  Recorde-se que, segundo Oswald, a obra-prima antropofágica foi escrita por Mário de Andrade, MACUNAÍMA, cujo subtítulo vale por todo um ensaio:  “O herói sem nenhum caráter”.  Entenda-se bem:  sem traços essenciais que autorizem a crença num sujeito autossuficiente.  O sujeito macunaímico torna cômica qualquer pretensão ontológica.  De igual modo, a criatividade da antropofagia depende do desejo de enriquecer-se por meio da assimilação do alheio.  Daí a resposta cirúrgica de Oswald, quando inquirido acerca de sua formação filosófica:  “A questão do ser não é ontológica, mas odontológica”.

 

No entanto, e ao mesmo tempo, Oswald nunca deixou de oscilar entre a vocação antropológica, geral, e a determinação histórica, nacional.  É o que esclarece um dos momentos-chave do MANIFESTO ANTROPÓFAGO:  “Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade”.

 

A tirada é perfeita, mas, ainda assim, assinale-se sua incoerência.  Ora, se só me interesso pelo que não me pertence, é preciso radicalizar a reflexão:  antes dos portugueses, simplesmente nenhum Brasil existia, pois o que posteriormente se chamou Brasil foi o resultado dos encontros e dos desencontros que definiram sua história.

 

Vale a pena recuperar a etimologia.  “Brasileiro”, inicialmente, era todo aquele que negociava pau-brasil e, por extensão, as coisas da terra.  Brasileiro designava uma profissão, não uma nacionalidade.  Nada mais distante de uma imagem idealizada das origens, reiterando a singularidade da contribuição oswaldiana à questão da identidade nacional.  Em 1950, em A CRISE DA FILOSOFIA MESSIÂNICA, Oswald deu um passo adiante, consolidando um pensamento de matriz antropológica, reiterando a centralidade do outro na definição do próprio.  Radicalizando a lição oswaldiana, chegaremos a uma definição inquietante, na qual impera a diferença, nunca a repetição.

 

O brasileiro:  hóspede do alheio.

 

Fonte:  ZeroHora/João Cezar de Castro Rocha (Professor da UERJ e Pesquisador do CNPq) em 06/09/2015.