HOMENS PELA ESCRITA
O SUPLEMENTO ABORDA GRANDES PERSONAGENS MASCULINOS DA LITERATURA BRASILEIRA
Eles são hiper-reais: mais reais do que o real. Figuras de papel com mais espessura do que muitos de nós. Ganharam vida e viraram imortais. Quem já não ouviu falar de Bentinho, o narrador enciumado de Machado de Assis que fala da suposta traição da sua Capitu, aquela mesma dos olhos de ressaca? Quem já não ouviu falar de Um certo Capitão Rodrigo e de suas façanhas de gaúcho? Quem já não disse por bravata “Buenas e me espalho, nos pequenos dou de prancha e nos grandes dou de talho”? Quem já não enxergou o Rio Grande do Sul pelos olhos dos personagens de Erico Veríssimo? Quem já não ouviu falar das preguiças de Macunaíma, o brasileiríssimo herói sem nenhum caráter do modernista Mário de Andrade? Quem já não ouvir falar de Riobaldo, o jagunço apaixonado de Guimarães Rosa? Quem já não ouviu falar de Paulo Honório, o narrador-personagem do universo patriarcalista descrito pelo grande Graciliano Ramos em “São Bernardo”?
Muita gente pode não se lembrar, mas já ouviu falar desses personagens na escola. Quem gosta de literatura, convive com eles como se fossem de casa. Eles expressam as muitas faces do Brasil, de um Brasil de várias épocas, com suas contradições e particularidades. Eu acrescento outro personagem a essa lista de ocasião: o negro Damião, de “Os Tambores de São Luíz”, de Josué Montello. Gosto de brincar com esta tese provocativa: o melhor romance brasileiro foi escrito por um autor considerado medíocre. Montello fez um dos melhores romances da escravidão. Damião caminha dentro da noite: “Por vezes, no seu passo firme pela calçada deserta, deixava de ouvir o tantantã dos tambores, calados de repente no silêncio da noite, com o vento que amainava ou mudava de direção. Daí a pouco Damião tornava a ouvi-los, trazidos por uma rajada mais fresca, e outra vez a imagem da nochê, cercada pelas noviches vestidas de branco, lhe refluía à consciência, magra, direita, porte de rainha, a cabeça começando a branquear”. Quer ver o trineto recém-nascido. Caminhos da liberdade.
O que contam esses personagens? O que contam os autores através desses homens que saltam dos livros para errar por fazendas, matas, bolichos, sertões, bairros cariocas ou de São Luíz, enfim, por toda a parte? O Brasil ainda se vê por meio desses personagens que expressam valores contraditórios pelo enfrentamento ou pela afirmação de preconceitos: machismo, rascismo, coronelismo, patriarcalismo e por aí vai. Quem somos? Macunaíma, Damião, Riobaldo, Paulo Honório, Capitão Rodrigo, Bentinho? Um pouco de todos eles? Kathrin Rosenfield, Alcy Cheuiche, Luiz Antônio de Assis Brasil, Luíz Maurício Azevedo e Léa Masina, perfilando esses personagens inesquecíveis, lançam pontes entre o passado e o presente, a ficção e a realidade, o possível e o provável, o verossímil e o verdadeiro, entre o mapa e o território. Personagens são seres reais transfigurados por autores em ficção antes do retorno à realidade como arquétipos incontornáveis.
– Não dá uma de Bentinho, vai!
Fonte: Correio do Povo/Caderno de Sábado/Juremir Machado da Silva (Coordenador Editorial) em 22/08/2015.