COM VOCÊS, A ILUSTRÍSSIMA MARQUESA DE RABICÓ.
MONTEIRO LOBATO – EMÍLIA FOI ESPÉCIE DE ALTER EGO DE LOBATO E COMPARTILHOU COM ELE A FALTA DE PAPAS NA LÍNGUA...
– Cuidado, Marquesa! Mil sábios já tentaram explicar a vida e se estreparam.
– Pois eu não me estreparei. A vida, Senhor Visconde, é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem para de piscar, chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos – viver é isso. É um dorme e acorda, dorme e acorda, até que dorme e não acorda mais. É, portanto, um pisca-pisca.
O Visconde ficou novamente pensativo, de olhos no teto. Emília riu-se.
– Está vendo como é filosófica a minha ideia? O Senhor Visconde já está de olhos parados, erguidos para o forro. Quer dizer que pensa que entendeu... A vida das gentes neste mundo, senhor sabugo, é isso. Um rosário de piscadas. Cada pisco é um dia. Pisca e mama; pisca e anda; pisca e brinca; pisca e estuda; pisca e ama; pisca e cria filhos; pisca e geme os reumatismos; por fim pisca pela última vez e morre.
– E depois que morre? – perguntou o Visconde.
– Depois que morre vira hipótese. É ou não é?
O Visconde teve de concordar que era” (trecho de MEMÓRIAS DE EMÍLIA, Monteiro Lobato, 1936).
Uma boneca de pano que explica a existência humana melhor do que qualquer filósofo, aquele “bicho sujinho, caspento, que diz coisas elevadas que os outros julgam que entendem e ficam de olho parado, pensando, pensando”. Essa é Emília, a ilustríssima Marquesa de Rabicó, que nunca se cansa de colocar boas pulgas atrás das orelhas dos leitores com sua personalidade questionadora e inventiva. Consagrada em nosso imaginário com os cabelos coloridos que ganhou na transposição para a série televisiva, a espevitada boneca foi um presente da Tia Nastácia para Narizinho, feita do retalho de uma saia velha, recheada de macela cheirosa e com olhos de retrós preto, “feia que nem uma bruxa”, como ela mesma descreve em suas memórias. Ao engolir a pílula falante receitada pelo famoso doutor Caramujo, Emília desandou a falar por três horas sem parar, e Narizinho logo concluiu que a boneca “era de gênio teimoso e asneirenta por natureza, pensando a respeito de tudo de um modo especial todo seu”. A menina do nariz arrebitado estava certa: a boneca reinou absoluta no Sítio do Pica-Pau Amarelo e em todos os outros universos por onde passou, reescrevendo os limites entre o real e a fantasia e conquistando o cargo de rainha do faz de conta brasileiro.
Personagem lobatiana por excelência, como bem definiu Marisa Lajolo, Emília foi uma espécie de alter ego de Lobato e compartilhou com ele a falta de papas na língua para expressar opiniões. Por conta disso, muitas controvérsias foram parar na boca da boneca – é dela a maior parte das falas consideradas racistas a respeito da Tia Nastácia, as quais a pouco tempo suscitaram uma grande discussão a respeito da aquisição, pelo governo federal, de exemplares de CAÇADAS DE PEDRINHO para serem distribuídos às escolas públicas do país. O debate é necessário e saudável para todos, afinal nem mesmo a literatura consagrada é para ser engolida como a pílula mágica da verdade (verdade que a própria boneca definiu como “uma espécie de mentira bem pregada, das que ninguém desconfia”...). Por outro lado, através de Emília o criador do não menos polêmico Jeca tatu distribuiu pílulas falantes numa época em que as meninas eram educadas para a submissão. E a danada fez escola: quando a jornalista, escritora e feminista Rosiska Darcy de Oliveira ingressou na Academia Brasileira de Letras, em 2013, homenageou em seu discurso de posse as personagens da ficção que transformaram sua vida, e lá estava Emília no topo da lista. “Emília ensinou às meninas da minha geração o sagrado direito à malcriação, à afirmação da vontade e à defesa de ideias próprias”, registrou a nova acadêmica diante da plateia de imortais. Vale lembrar que a partir de preceitos como esses, disseminados pela boneca de pano ainda nas décadas de 30 e 40 do século passado, um grupo de mulheres daria início, no Brasil censurado de 30 anos depois, a um movimento que revolucionaria a sociedade. Mas essa é outra história.
A maior revolução de Emília, a irresistível transgressora, foi nas nossas letras: a boneca foi ao céu, ao País da Gramática, desligou a chave do tamanho, reformou a natureza, escavou um poço de petróleo, ajudou Hércules a cumprir os 12 trabalhos, conheceu Hans Staden, Peter Pan, Dom Quixote, batizou um rinoceronte de Quindim e foi dormir só depois dos serões da Dona Benta. A inteligência aguda e o jeitinho petulante fizeram dela a mentora de uma trupe determinada a dar asas – ou pós de pirlimpimpim – à imaginação das nossas crianças, e não por acaso o projeto lobatiano de fazer livros “onde as nossas crianças possam morar” rompeu a tradicional função didática da escrita destinada a esse público. Depois do SÍTIO DO PICA-PAU AMARELO, a chamada “literatura infantil brasileira se reinventou e hoje é herdeira de uma linguagem que persegue os limites do lúdico sem abrir mão da literariedade, transbordando qualquer tentativa de categorização. Deve ser por conta do tamanho feito que a atrevida andou se comparando a um dos maiores personagens da literatura universal: “Sou de pano, sim, mas de pano falante, engraçado paninho louco, paninho aqui da pontinha. Não tenho medo de vocês todos reunidos. Aguento qualquer discussão. A mim ninguém me embrulha nem governa. Sou do chifre furado – bonequinha de circo. Dona Quixotinha...”
Fonte: Correio do Povo – CS Caderno de Sábado/Camila Doval (Doutoranda em Teoria da Literatura, bolsista CNPq, autora de Mãos de Amanda) em 10 de outubro de 2015.