UM OLHAR SOBRE O BRASIL
Homenageado pela Flip, Lima Barreto é tema de uma alentada nova biografia pela historiadora Lilia Moritz Schwarcz e tem sua obra reeditada por mais de uma editora.
Lima Barreto: Triste Visionário de Lilia Moritz Schwarcz. Biografia, Companhia das Letras, 656 páginas em e-book e impresso.
Se é fato que todas as vidas sofrem as consequências de seu tempo, em algumas delas as ondas de choque da História doem mais do que em outras. Nesse sentido, a vida do escritor Lima Barreto (1881-1922) é um retrato contundente do entrechoque das forças que moldaram o Brasil em que ainda vivemos. Negro, combativo, ácido, contra as hipocrisias da sociedade em que vivia – em que teorias racistas supostamente científicas tentavam manter o apartheid até então naturalizado pela escravidão – Lima foi um autor que sofreu pelo seu projeto literário, todo ele muito consciente. É essa a interpretação oferecida pela historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz em LIMA BARRETO: TRISTE VISIONÁRIO, biografia do autor lançada há poucas semanas.
Fruto de uma pesquisa de 10 anos, a biografia pretende trazer para o centro da vida de Lima um assunto que ele próprio tirou do pano de fundo do Brasil de seu tempo: o racismo nem sempre velado de cada dia.
- Penso que a gente faz uma biografia para lidar com um personagem porque ele tanto representa o seu momento quanto tem singularidades que devem ser destacadas. E o Lima Barreto representa uma história do nosso país, um projeto e uma face difícil do nosso país, que promete tanta inclusão social e cujos dados até hoje mostram a evidência da exclusão não apenas racial, mas de várias faces da população – diz Lilia.
LIMA BARRETO: TRISTE VISIONÁRIO, faz um apanhado que entremeia a vida do escritor Afonso Henriques de Lima Barreto com as circunstâncias históricas de seus breves 41 anos de vida: a abolição, o fim do Império, a ascensão da República, a ditadura militarista que marcou os primeiros governos do regime republicano, e como cada um desses momentos impactou a vida de Lima. O livro também mapeia os usos que o autor faria em sua ficção de episódios da própria biografia, como a passagem pelo serviço público, a formação de seus pais, negros libertos e com formação profissional, até suas próprias crises de alcoolismo.
UM INCONFORMADO DESCONFORTÁVEL
Após perder a mãe aos seis anos de idade e largar o curso de Engenharia na prestigiada Escola Politécnica, Lima se tornou funcionário público amanuense para sustentar o pai doente (insano e alcóolatra) e os irmãos menores. A partir daí, foi cavando espaço na República das Letras brasileira (expressão que ele cunhou), sempre como um elemento pouco confortável pela acidez de sua pena satírica, sensível como um sismógrafo às máscaras da sociedade brasileira – mesmo que algumas das ambivalências fossem as do próprio “Lima”, como era chamado em seu tempo.
- O Lima tinha um projeto literário considerado “desagradável”. Era um autor que atacava a República sem dó nem piedade. Há trechos dele que são de uma atualidade impressionante. Na questão racial, ele pega um plano que fazia parte dos fundos, do segundo plano, dos bastidores e o transforma numa questão central – diz Lilia.
Autor homenageado da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) deste ano, Lima terá boa parte de sua obra reeditada por mais de uma editora. A Companhia das Letras deve pôr nas livrarias ainda este mês novas edições de IMPRESSÕES DE LEITURA E OUTROS TEXTOS CRÍTICOS, seleção de textos críticos de Lima organizada por seu primeiro biógrafo, Francisco de Assis Barbosa. A professora da UFRJ Beatriz Rezende é a organizadora da nova seleção, que inclui outros textos. Ela é também responsável por uma nova edição da Carambaia, que reúne em um único volume os romances satíricos OS BRUZUNDANGAS (1922) e NUMA E A NINFA (1915).
ENTREVISTA
LILIA MORITZ SCHWARCZ
Autora de LIMA BARRETO: TRISTE VISIONÁRIO
Antropóloga e historiadora, Lilia Moritz Schwarcz pesquisou ao longo de 10 anos a vida de Lima Barreto. A biografia LIMA BARRETO: TRISTE VISIONÁRIO é um amplo apanhado dos tempos que formaram o autor, da vasta gama de textos publicados por ele em sua curta vida e das impressões deixadas por ele em seus contemporâneos – muitos deles também seus desafetos, dada a contundência com que ele atacou muitas das estruturas de seu tempo:
Ainda é possível encontrar quem discuta o papel de Lima Barreto no “Cânone literário”. A que a senhora atribui essa prevenção?
Primeiro teremos que perguntar o que é esse cânone e quem detém a régua e o compasso. Não existe essa racionalidade, e o Lima é autor de uma obra muito vasta. Penso que ele foi sofrendo vários impedimentos durante a vida e depois. Impedimentos que digo são quase censuras. Ele tinha um projeto literário e lutou por ele. Parte desse projeto passava pela ideia de provocar. Por exemplo, o primeiro livro do Lima Barreto, RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAíAS CAMINHA. A primeira parte é uma beleza, uma crítica ao racismo de uma contundência impressionante. A segunda parte é um roman à clef, um ataque ao jornalismo da época, aos seus “colegas de redação”, por assim dizer. E antes da publicação integral do romance, o Lima veiculou alguns trechos na revista Floreal, e já de saída sofreu um veto por parte dos jornalistas e não recebeu as resenhas que queria. No segundo livro, NUMA E A NINFA, ele bate em quem? Nos políticos. E também nos funcionários públicos, mesmo sendo um deles.
O embate dele contra os modernistas de São Paulo também é apontado em seu livro como parte da longa “queda em desgraça” de Lima imediatamente após sua morte.
Ele tem uma divergência co o pessoal da Klaxon que vai repercutir não tanto com o grupo de 1922, mas com o que se estabilizou depois. O Lima recebe a Klaxon do Sérgio Buarque de Hollanda, que então era um jovem dândi, muito cioso de si. E o Lima escreveu uma carta debochada caceteando a revista. O pessoal da Klaxon escreveu uma réplica muito forte, o desautorizando. No período posterior, os modernistas paulistanos, com sua régua e compasso, vão colocar o Lima no balaio do que se chamava “pré-Modernismo”. Ora, “pré” é quase categoria de acusação: você não foi e também não será. O próprio Sérgio Buarque de Hollanda faz uma crítica ao CLARA DOS ANJOS, que eu reproduzo no livro, usando um argumento que se usaria demais: que o Lima Barreto não tinha imaginação, que fazia literatura militante e colada demais à própria vida. Ora, o , na minha opinião. Ambos tinham origens semelhantesque pensar desse argumento hoje, com a autoficção de Knausgard, Coetzee, só para usar alguns exemplos? O Lima tinha um arrojo muito moderno: usava a linguagem do povo, era contra academicismos, o que foi outro ponto de veto a ele.
Lima e Machado, dois dos maiores autores nacionais, dois negros, foram assumindo o caráter de “figuras políticas. Para alguns, Machado era o “modelo de excelência” que Lima nunca foi. Para outros, Lima bateu com mais coragem na questão da escravidão, que Machado teria escamoteado. Como a senhora vê essa questão?
Quando você passa 10 anos pesquisando Lima, as pessoas acham que você é automaticamente uma antagonista de Machado. Essa é uma atitude dicotômica, empobrecedora, na minha opinião. Ambos tinham origens semelhantes, ou seja, eram descendentes de escravizados e nasceram de pais livres, o que fazia imensa diferença no Brasil no final do Império e no começo da República. Depois as coisas não andariam bem, mas no princípio o Lima teve uma família que hoje chamaríamos de até mais “estruturada” que a do Machado. O pai era tipógrafo, a mãe era professora. A acusação que se faz de que o Machado ignorou a escravidão também não é fato. Então, esse tipo de oposição não me interessa. O que me interessa é que eles tinham projetos literários diferentes. O Machado de fato visava a outro tipo de literatura. O Lima tinha em vista algo que ele mesmo chamava de “realista”, vinculado ao seu momento, militante e, mais para a frente, anarquista.
A senhora hoje se manifesta a favor das cotas. Mas um manifesto de intelectuais contra as cotas, datado de 2006 e publicado no jornal Folha de S. Paulo apresenta sua assinatura. A senhora mudou de opinião?
O primeiro texto daquele manifesto, que foi o que eu li e assinei, não era contra as cotas. Estava se discutindo na época um estatuto da igualdade racial, e esse estatuto era o que eu dizia que não estava bem elaborado ainda. Mas na época eu já trabalhava no Inclusp, o grupo que se formou na USP para discutir inclusão social na universidade. E acho que daquele momento para agora eu radicalizei a minha posição e me orgulho disso, me orgulho por, desde esse incidente, batalhar abertamente por cotas na minha universidade e em todos os lugares que eu falo.
Fonte: ZeroHora/2º Caderno/Carlos André Moreira (carlos.moreira@zerohora.com.br) em 04/07/2017.