HOMENS PELA ESCRITA – PARTE 4/PAULO HONÓRIO
UM PERSONAGEM ERRANTE.
É curioso ver como algumas personagens de caráter errante – digamos assim – exercem fascínio sobre os leitores. Aí está Macunaíma, está Julien Sorel de “O Vermelho e o Negro”, ainda algumas figuras execráveis dos romances de Balzac, que escancararam as mazelas da restauração burbônica. Gatsby, de outra época, é também representativo; no caso, das elites dos anos loucos nos Estados Unidos.
Cada época escolhe as personagens que a representarão. Nessa linha de reflexão é que pode ser visto Paulo Honório, protagonista e narrador de São Bernardo, de Graciliano Ramos. Este romance foi publicado em 1934, e cabe referir o quanto o momento histórico foi relevante: assistia-se, mundialmente, à franca ascensão dos regimes totalitários que, com o correr do tempo, não abdicaram da brutalidade e do extermínio em massa para se manterem no poder. Paulo Honório é uma espécie de metonímia de todo esse percurso humano, psicológico e, também, político.
A narrativa acompanha sua vida até a idade madura, quando, após ser vítima de seus próprios ardis, nada mais lhe resta senão lamentar o que fez, num arrependimento não apenas falso como vazio de consequências. Contada por ele mesmo, vemos que o egoísmo foi a tônica de sua conduta, e os estreitíssimos espaços de certa nobreza são maculados por ações de alta gama de perversidades, como o roubo, a extorsão, a chantagem, o casamento por interesse e, até, o assassinato.
A história, do plano dos episódios, mostra-o numa infância extremamente pobre, na qual vendia doces e era guia de um cego. Sua elevação econômica dá-se num plano de vertigem: vai trabalhar na roça, comete seu primeiro homicídio, pega dinheiro emprestado com um agiota e lança-se ao sertão na busca de enriquecimento rápido. Estabelece uma falsa amizade com o dono da fazenda São Bernardo e voluntariamente leva-o à falência, comprando depois a propriedade por preço vil; para ampliá-la, manda matar o fazendeiro vizinho. Segue-se o casamento por interesse e é então que passa a ser perseguido por ciúmes patológicos da mulher que lhe deu um filho; ela, por não mais suportar a pressão do marido, acaba por suicidar-se. Como se percebe, não falta nenhum ingrediente de iníquo nesse percurso. Depois de dois anos de viuvez, ele se põe a escrever seu livro de memórias, e é quando diz: Cinquenta anos! Cinquenta anos pelo São Pedro. Cinquenta anos perdidos, cinquenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e a maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casca espessa e vem ferir cá dentro a sensibilidade embotada. Cinquenta anos! Quantas horas inúteis! Se Paulo Honório declara expressamente que maltratou os outros e a si mesmo, o resultado não foi um natural pedido de remissão à vida, mas um endurecimento de sua sensibilidade.
Costuma-se dizer que a linguagem de Graciliano é seca como o sertão. Embora uma ideia pronta, nada mais verdadeiro. Ele sabe que a maior simplicidade resulta em maior expressividade. Este romance pôs de saída um desafio a seu autor. Narrado – e escrito – na primeira pessoa, como conciliar o discurso literário com um homem de tão pouca formação escolar, para quem a leitura era apenas aquela dos interesses práticos, como a contabilidade e o cultivo da terra? Isso vem contado pelo próprio narrador, quando descreve suas tentativas de fazer com que um amigo escreva o livro por ele. Lê-se: O resultado foi um desastre. Quinze dias depois do nosso primeiro encontro, o redator do Cruzeiro apresentou-me dois capítulos datilografados, tão cheio de besteiras que me zanguei: - Vá para o inferno, Gondim. Você acanalhou o troço. ... Há lá ninguém que fale dessa forma! Azevedo Gondim... replicou amuado que um artista não pode escrever como fala.
– Não pode? Perguntei com assombro. E por quê? Azevedo Gondim respondeu que não pode porque não pode.
Essa birra de Azevedo Gondim é significativa da recusa de Graciliano em aceitar as fórmulas linguísticas consagradas que, via de regra, prestigiava as expressões beletrísticas e enfadonhas de seu tempo. Depois de bate-boca com seu ghost-writer, Paulo Honório decide ele mesmo contar sua vida, com sua linguagem. Nesse sentido, ele – Graciliano, claro – é o autor que vem restabelecer a pureza de uma língua literária que chega até hoje. Assim, Paulo Honório serviu de porta-estandarte de uma estética textual que o tempo não desmentiu nem degradou, elevando o autor ao nível dos melhores.
E agora voltamos à questão proposta lá acima. Essas personagens mal-amanhadas e oportunistas nos seduzem, não por serem o que são, não por seus defeitos, mas porque, à falta de um desígnio superior ou metafísico, são salvos pela literatura.
Fonte: Correio do Povo/Caderno de Sábado/Luiz Antônio de Assis Brasil (escritor) em 22/08/2015.