EUCLIDES, UM INVENTOR
Engenheiro de formação, Euclides foi influenciado pelo pensamento científico da época.
Lembra Luís Edmundo em suas memórias (1) o alvoroço causado na Confeitaria Pascoal, tradicional ponto de encontro de escritores cariocas, quando alguém apareceu por lá com uma brochura espessa e mal impressa debaixo do braço intitulada OS SERTÕES. O livro acabara de ser comentado pelo temível crítico José Veríssimo no Correio da Manhã de 3/12/1902. O autor era um tal de Euclides da Cunha. Quem? Ninguém o conhecia.
No início do século XX vida literária na capital federal era alimentada mais pela vaidade dos protagonistas do que pela qualidade das obras. A disputa era feroz. Medalhões como Coelho Neto, Olavo Bilac e Medeiros e Albuquerque participavam dos debates procurando manter a elegância. Já os novos se envolviam em polêmicas raivosas, em que não faltavam xingamentos, tapas na cara e culminavam em duelos “até o primeiro sangue”.
O fato é que nunca, como na belle époque carioca, a vida literária foi tão exuberante. E, talvez, nunca as obras tenham sido tão sofríveis. O que levaria Alceu Amoroso Lima a batizar o período de “Pré-Modernismo”, definindo-o não pelo que era, mas por comparação a um movimento ainda por nascer. Nessa atmosfera de fogo fátuo, Lima Barreto seria a voz destoante e pagaria com seu calvário e seus porres (2) o preço por retratar as mazelas e misérias do Rio de Janeiro e não os encantos e mistérios de Paris.
Esse é o panorama literário do país, a 1 de dezembro de 1902 surge a primeira edição de OS SERTÕES (com erros de impressão que o autor emenda, nos mil, exemplares da edição, usando tinta nanquim e ponta de canivete). Chancelada pela Laemmert & Cia. – casa especializada em livros “sérios e científicos”, esgota-se em menos de três meses. De imediato se estabelece a dúvida sobre o “gênero” da obra. É ciência ou relato histórico? É crônica jornalística ou estudo sociólogo? Vai para a prateleira dos tratados ou fica melhor entre versos e romances? O fato é que Euclides, em menos de um ano, passa de completo desconhecido a festejado membro da Academia Brasileira de Letras, ao lado de Machado de Assis e Rui Barbosa. Mas ele é mesmo o quê? Um geógrafo? Um historiador? Um ensaísta?
No início do século XX o culto à Ciência atinge, com Augusto Comte, status de religião. O próprio Euclides é adepto do Positivismo. Sua formação científica tem origem, segundo Nelson Werneck Sodré (3), na ideologia colonialista que sustentava a superioridade racial e a “missão civilizatória” das potências imperialistas do Ocidente.
Engenheiro de formação, Euclides foi influenciado pelo pensamento científico de uma época em que as ideias de Freud, Einstein e Saussure ainda não haviam sacudido o sufocante racionalismo do século XIX. Num meio intelectual dominado por bacharéis, entende-se que seu livro, por bom tempo, tenha siso valorizado pelo conteúdo supostamente científico. A primeira parte – A Terra – foi saudada como tratado de geografia física e humana. A segunda – O Homem – onde afloram as teorias racialistas então vigentes, foi aplaudida como acurado estudo sobre a formação étnica da população brasileira. A terceira – A Luta – mereceu elogios como crônica histórica.
Caberia a Afrânio Coutinho, 50 anos depois da primeira edição de OS SERTÕES lançar um novo olhar sobre o monumento literário de Euclides, definindo-o como obra de ficção. “Livro único, dessas obras inclassificáveis dentro dos esquemas simplistas dos gêneros. Sobretudo, refogue à classificação unívoca, participando por natureza da condição de diversos gêneros. Mas subestimar-lhe a natureza literária, considera-la obra de ciência, parece-me um erro fundamental de apreciação”. (4) Gilberto Freyre já destacara mais qualidades literárias do que científicas em OS SERTÕESA, ressaltando que “havia em Euclides da Cunha o poeta, o profeta, o artista cheio de intuições geniais”. O mestre pernambucano coloca Euclides à frente de seu tempo, ao considera-lo “escritor adiantadíssimo para o Brasil de 1900” (6).
Abrigar OS SERTÕES no domínio da Poética, como faz Afrânio Coutinho, sem filiá-lo a gênero até então conhecido guinda Euclides à categoria de “inventor” (7), ou seja, ele praticou uma forma de expressão literária que rompeu com os cânones vigentes. Seriam “invenções”, só para citar algumas, obras como o DECAMERON, D.QUIXOTE e TRISTRAM SHANDY (8), que provocaram mudanças irreversíveis nas práticas literárias de seu tempo.
Não é exagero conceder a Euclides esta primazia na literatura brasileira. O caráter de “invenção” de OS SERTÕES, se passou despercebido para os pré-modernistas, repercutiu com som e fúria nas décadas seguintes. Basta lembrar os ecos euclidianos nas obras primas dos mestres Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. Pode-se especular se Euclides tinha consciência de seu feito, ou como o lendário Caramuru, atirou no urubu e acertou no gavião. É, contudo, pouco provável que se considerasse ficcionista. Ao traçar o perfil do coronel Moreira César, ele deixa uma pista sobre a imagem que faz de seu trabalho: “Na apreciação dos fatos, o tempo substitui o espaço para a focalização das imagens: o historiador precisa de certo afastamento dos quadros que contempla” (9). Quando se intitula “historiador”, parece ignorar a dimensão da própria criação, o que não é de estranhar, já que as grandes obras de arte brotam mais do inconsciente do artista do que de sua consciência.
Mais de um século após sua trágica morte, importa relevar o papel transformador de Euclides em nossa prosa de ficção. O imaginário épico, as ousadias estilísticas, o protagonismo dos explorados e esquecidos, marcas indeléveis n’OS SERTÕES, levariam, nas gerações seguintes, nossos romancistas a descer do Parnaso para trilhar as grandes veredas, sertões e quebradas do Brasil profundo.
Fonte: Jornal Correio do Povo/CS/Sinval Medina/Escritor em 06/07/2019