Translate this Page




ONLINE
92





Partilhe esta Página

                                            

            

 

 


Sergio Faraco: Trocando Cartas com Erico Verissimo
Sergio Faraco: Trocando Cartas com Erico Verissimo

O COMPANHEIRO

 

Escritor Sergio Faraco revisita correspondências que trocou com Erico Verissimo entre 1967 e 1974. As cartas, em sua maioria inéditas, revelam toda a generosidade e alguma intimidade do autor de O TEMPO E O VENTO.

 

Erico, eu o conheci em meus 19/20 anos, na sala da chefia da Enfermaria 38 da Santa Casa de Porto Alegre, a sede da Cátedra de Terapêutica Clínica da Faculdade de Medicina da UFRGS antes da inauguração do Instituto de Clínicas. Ele era paciente do catedrático, que por sua vez era meu tio (irmão de meu pai), o médico Eduardo Faraco. Nessa época eu já escrevia, embora ainda não tivesse publicado coisa alguma, nem mesmo em jornais ou revistas, e, ao me defrontar com alguém que era o que eu ambicionava ser, senti um misto de pudor e deslumbramento. Erico me olhava, o rosto trigueiro, indiático, inexpressivo, já o olhar era atento e ligeiramente divertido. Por certo notou meu embaraço e tratou de me deixar à vontade, foi tão cordial e afetuoso que até parecia que era ele o tio.

 

Passaram-se alguns anos sem que o visse novamente.

 

Em 1962, eu residia em Santa Catarina e, em 1963, fui para a União Soviética, retornando em 1965 para morar em Uruguaiana. De Erico tinha notícias pelos jornais, ele acabara de publicar O SENHOR EMBAIXADOR. Em 9 de agosto de 1965, ele escreveu do Rio de Janeiro para meu tio, contando que a carreira do romance era exitosa. Em São Paulo, fizera uma sessão de autógrafos de três horas. No Rio, duas sessões de duas horas cada uma. A convite, estivera na Academia Brasileira de Letras, visita que referia como uma “viagem à aurora do mundo”.

 

Em 1967, algumas histórias (ou estórias, como ele preferia) que eu escrevera lhe chegara às mãos através de Tio Eduardo. Pouco depois, recebi uma carta dele. Comentava que lera e ai além:

 

Vai então pensei assim: será que esse moço vai continuar a escrever e portanto seguir os caminhos, quase sempre duros e ásperos que encontra o escritor novo em nossa terra? Pensei no Alegrete e comparei-o com a minha Cruz Alta. Até os 25 anos vivi em minha terra natal. Apenas os livros que eu recebia de São Paulo (entre eles algumas obras em inglês da velha Coleção Tauchnitz) me ligavam com o resto do mundo. O meu burgo não me dava estímulo. Muitas vezes estive a pique de desanimar. Todas essas lembranças me fizeram pensar em você e em sua situação. Está claro que o Alegrete de 1967 está muito, muito mais perto do mundo do que a Cruz Alta de 1930. E o simples fato de vocês terem aí esses Cadernos do Extremo Sul é muito significativo. Mas uma coisa continua inalterada. Se em 1930 era difícil para um sujeito do Interior fazer carreira literária, em 1967 talvez seja ainda mais problemática. Assim aqui estou para lhe perguntar o que é que pretende fazer, o que é que está fazendo agora, quais são os seus planos, etc. Gostaria de conversar com você, não porque me julgue detentor da fórmula literária mágica, mas porque, com empatia de romancista, me ponho na sua pele e sinto, adivinho seus problemas. Faço-lhe aqui um convite. Quando vier a Porto Alegre, venha à minha casa, de preferência à noite. Ou durante o dia se for um sábado. Creio que uma experiência de 35 anos de literatura não é para desprezar.

 

A carta é de 8 de agosto. Eu não quis acreditar que significasse um reconhecimento de meus méritos, na minha opinião – ainda hoje – muito pequenos. A iniciativa dele teria sido uma homenagem ao meu tio, do qual, além de paciente, era um grandíssimo amigo. Isso queria dizer que a amável justificativa para seus comentários, a seguir transcrita, poderia ser interpretada contrario sensu:

 

E note que não estou dizendo estas coisas por ser você sobrinho do Eduardo, mas unicamente porque descubro talento e vigor no que você escreveu (…).

 

Respondi em seguida, aludindo aos meus apertos de iniciante, e a chegada de uma segunda carta, datada de 4 de setembro, levou-me a pensar que seu interesse talvez não derivasse apenas de meu parentesco, talvez ele achasse que valia a pena me ajudar. Ele discute minhas dúvidas, minha insegurança:

 

Aos 62 anos de idade estou também cheio de dúvidas e descontentamento quanto ao que escrevo. Mas reconheço que meus limites são esses… e que se vai fazer? É na sua idade, Sergio, que a gente tem licença de errar, tatear, buscar, sem maiores preocupações. O que val é o ímpeto criador, e esse você tem, sem a menor dúvida. Deixe os cuidados e exigências maiores para o tempo em que se avizinhar da meia idade ou da velhice.

 

Remete à falta de estímulo os obstáculos que eu encontrava:

 

(…) não só do ambiente local como também do estadual. O Rio Grande está meio estagnado em matéria de literatura, por culpa talvez dos homens da minha geração. Meus companheiros nada mais leem, nada mais querem fazer. Entraram numa aposentadoria não só do corpo, mas também do espírito. As exceções são poucas.

 

Manifesta esperança na geração consecutiva, citando Paulo Hecker Filho, Wilson Chagas, José Paulo Bisol, Santiago Naud, Carlos Nejar, Lya Luft, Lara de Lemos e Carlos Legendre, mas observa:

 

Os novos estão desamparados: não encontram editores. É natural que culpem os mais velhos. Acontece, porém, que nós abrimos a nossa picada praticamente sozinhos. Ninguém pode ajudar ninguém de maneira profunda. Acredito que uma palavra de estímulo ajude. Amizade ajuda. Mas a criação artística é um ato solitário. Agora, falando nos aspectos práticos, temos um fator positivo que é o editor. Ora, literatura e comércio são coisas diferentes. É um casamento desigual que quase sempre acaba em divórcio e ódio. O que nos falta no Brasil são editoras universitárias, como as dos Estados Unidos, que publicam o que é bom literariamente sem olhar seu valor comercial. O nosso Instituto do Livro poderia preencher essa finalidade. Os famosos concursos literários são inócuos, na minha opinião. O interessante seria que o instituto publicasse os novos merecedores disso por uma comissão de alto nível.

 

Não esquece nem a menção que eu fizera aos fatos que muitos anos depois seriam relatados em LÁGRIMAS NA CHUVA (2002), sobre minha temporada em Moscou:

 

Outra coisa: sua decepção ideológica, digamos assim, tem muito a ver com seu estado de espírito. É um nicho que de repente se esvazia. E quanto a sua URSS, estou de acordo com você. Há o perigo de ser usado para propósitos que você reprova. Se a experiência russa sob certos aspectos foi um fracasso e é uma desilusão, por outro o que temos do lado de cá não é nada edificante e não merece o nosso apoio. Lembre-se de Camus. Sobreviveu bravamente à sua desilusão do comunismo. E que grande sujeito ele era! E que grandes livros escreveu!

 

É uma tolice a gente dar conselhos. Mas… por que não pensa em botar em romance a sua experiência pessoal? O homem que viveu numa cidade pequena e que um dia tem a oportunidade de viajar. Tudo na forma de uma espécie de diário. Creio que muitos dos perigos que você prevê poderiam ser contornados, pois o leitor ficar ia sabendo que v. também não aprova o que vê do lado de cá. Uma cidade como Alegrete é um assunto excelente. E o fato de você ter por um lado sangue estrangeiro é mais um elemento interessante para o romance. Tente isso. Ou, melhor, pense nisso.

 

A carta é longa, duas páginas compactas datilografadas em espaço 1, mas ele ainda se desculpa não não tê-la escrito como gostaria:

 

Estou escrevendo esta carta às carreiras, para não deixar a sua sem resposta. Na verdade, não é a carta que eu desejaria escrever. Acontece, porém, que minhas personagens estão acenando freneticamente, e eu tenho de entrar agora numa nova dimensão. Quando vier a Porto Alegre apareça aqui em casa. Renovo o convite. Com exceção dos sábados, estamos todas as noites perto duma lareira à espera dos amigos. Dormimos tarde. Teremos bastante tempo para conversar.

 

No ano seguinte, 1968, Erico e a esposa viajaram. Em carta de 13 de junho para Tio Eduardo, remetida de McLean, na Virgínia, ele descreve sua incansável perambulação, que deveria ser imputada ao seu “apetite geográfico, essa vontade de conhecer terras e povos”. Bruges, Bruxelas, Paris, Nice, St. Paul de Vence, Cannes, Roma, Taormina, Messina, Roma de novo, Veneza, Viena, Praga, Viena outra vez Salzburgo, Zurique, Basel, “e uma viagem noturna da Suíça até Ostende, atravessando de novo a Alemanha, Luxemburgo e Bélgica, para pegar o vapor que nos levaria a Londres”.

 

Permaneceu algum tempo nos Estado Unidos e, de retorno ao Brasil, não deixou de responder – e com que elegância! - o cartão em que eu dizia não ter gostado de O PRISIONEIRO, ou, por outra, que só gostara depois da página 100, quando a novela intensifica sua ação. A carta é de 3 de janeiro de 1969:

 

Li com atenção o que me dizes sobre O PRISIONEIRO. Curioso, o Brenno Silveira, teu conterrâneo, me assegura de que gostou da novela até a página 100… Creio que com o diálogo eu procurei não só economizar espaço e tempo (pois um livro desse gênero não deve ser longo) como também revelar a psicologia dos personagens. E depois, como é mais agradável e mesmo natural usar o diálogo e reduzir ao mínimo a intervenção do escritor! Se eu quisesse descrever a situação com palavras minhas correria o risco de dar ao livro um ar de editorial… Enfim, cada leitor sente de um modo todo pessoal as coisas que lê. Nisso é que reside a dificuldade e ao mesmo tempo o encanto da ficçaõ.

 

Pouco depois, no dia 20, um bilhete:

 

Eu não sabia que você estava morando em Porto Alegre e tão perto de nossa casa… Escrevi-lhe um cartão logo que voltei do estrangeiro e enderecei-o ao Alegrete. Por que não aparece por aqui à noite, num dia da semana, para uma prosa? Eu só trabalho durante o dia. (…) Cheguei aos 63 e vejo pouco tempo pela frente… Sinto dentro de mim uns cinco livros. E vejo mais de cem que desejo e preciso ler.

 

No mesmo ano, outro bilhete, escusando-se por demorar na resposta a uma carta minha:

 

Você já deve (e co razão) estar pensando coisas horríveis por causa do meu silêncio. Mas não respondi à sua carta de 20/8 porque há três meses não leio correspondência. Tive de fazer isso para poder terminar um livro que aparecerá em novembro próximo. Tenho acompanhado sua colaboração no Caderno de Sábado. Tenho gostado muito de suas estórias. Mas precisamos conversar. Por que não aparece? Agora minha casa anda mais sossegada. Mafalda e eu temos ouvido música à noite, sozinhos. Por que não trazes tua senhora? Parabéns pelo nascimento da filha! Quando apareceres, conversaremos sobre os teus trabalhos, os meus e os dos outros.

 

Ainda em 1969 – 5 de dezembro –, por causa de algo que eu perguntara, ele refere alguns dos 16 livros que traduzira, como MAS NÃO SE MATAM CAVALOS, de Horace McCoy, RATOS E HOMENS, de John Steinbeck, e FELICIDADE, de Katherine Mansfield, e acrescenta:

 

Terminei Israel em abril, prestes a aparecer. Estou mexendo num novo romance de ambiente brasileiro e atual. Em suma: procurando barulho.

 

INCIDENTE EM ANTARES, imagino. Vontade eu tinha de visitá-lo, mas não o fazia para não tomar seu tempo. Estive apenas duas vezes em sua casa, numa delas por ter dado uma carona a Mario Quintana. No período 1968-71, em que fomos quase vizinhos em Petrópolis, ocasionalmente conversávamos na rua, durante as caminhadas que ele dava com sua Mafalda. Mas havia as cartas, os bilhetes, e era neles que o sentia mano a mano. Ele lia meus contos no Caderno de Sábado do Correio do Povo e me noticiava suas impressões, nem sempre favoráveis. Atitude que não se esgotava no estímulo de” m sua prosa tão pessoal e independente (há uma outra palavra do mesmo tipo que também me soou falsa, mas não me lembro qual é).

 

A última carta é de 31 de julho de 1974. Nessa altura, suas relações com meu tio já não eram de médico-paciente e tanpouco de amizade, estavam afastados desde 1971. Ele lera meu primeiro livro, DEPOIS DA PRIMEIRA MORTE. “Pulando por cima duma montanha de livros recebidos nestes últimos cinco meses e das 250 cartas que ainda não respondi”, estimulava-me a persistir na ficção, sempre com a mesma solicitude, o mesmo afeto, o mesmo respeito, como se fôssemos dois iguais em talentos, como se não tivesse ele uma obra estupenda, traduzida para dezenas de idiomas, e não fosse eu um plumitivo tentado descobrir o caminho da literatura.

 

E, bem-humorado,aludia aos seus afazeres:

 

Estou trabalhando muito (…). Sinto que ainda tenho alguma munição, mas reconheço que na vizinhança dos 69 a gente já vai se retirando do campo de batalha. Nesse caso o que importa é pelear. Passa muita gente por esta casa. Uma noite dessas tive aqui 30 pessoas. O telefone não cessa de tocar. Sempre é alguém que me pede alguma coisa. As professoras mandam os alunos fazerem “pesquisas” sobre um escritor. E aí entra o que eu chamo “a linha de menor resistência”. O escritor escolhido sou eu. E os espertinhos dos estudantes (cartas de várias localidades do Brasil) fazem perguntas tais que no fim quem faz a “pesquisa” para eles é a vítima, isto é, o escritor escolhido para o “estudo”. Estou metido em meu porão desunhando o segundo volume do SOLO e já sabendo que terei de escrever um terceiro (bom, o Gilberto Amado dividiu sua autobiografia em cinco ou seis tomos).

 

 

Adiante, previne:

 

Mas voltaremos ao seu livro. Não me enganei quando li pela primeira vez um escrito teu. Não me pedes conselho, mas não resisto à tentação de te dar um. Este: não liga muito à crítica. Há excelentes críticos, claro, mas a maioria deles é formada de moços apressados que podem por alguma razão não gostar de ti pessoalmente ou então, o que é mais provável, podem achar que é mais fácil chamar a atenção do público atacando do que elogiando os livros que aparecem.

 

E insiste no convite para a visita: “Gostaria muito que viesses um dia à nossa casa. Mafalda, que é tua amiga como eu, também participa desse desejo”. E a certa altura: “A saúde felizmente vai bem, tão bem que às vezes chego a ficar preocupado...”.

 

Mas a preocupação ficou conosco, menos um lugar na mesa, mais um nome na oração, como no verso de Quintana. E que nome! Não só o do grande escritor, que está no coração de todos nós e passará, por nós, aos corações de nossos filhos, nossos netos, e ainda será cultuado quando nossos corpos, e os corpos de nossos filhos, nossos netos, forem apenas pó. Para nós, jovens escritores de então, ficou também o nome do generoso e amado companheiro.

 

FRASES DE ERICO VERISSIMO

 

Pensei no Alegrete e comparei-o com a minha Cruz Alta. O meu burgo não me dava estímulo. Muitas vezes estive a pique de desanimar. (…) se em 1930 era difícil para um sujeito do Interior fazer carreira literária, em 1967 talvez seja ainda mais problemático.”

Erico Verissimo em carta a Sergio Faraco, 8 de agosto de 1967.

 

Aos 62 anos estou cheio de dúvidas quanto ao que escrevo. Mas reconheço que meus limites são esses… E que se vai fazer? É na sua idade, Sergio, que a gente tem licença de errar, attear, buscar, sem maiores preocupações. O que vale é o ímpeto criador.”

Erico Verissimo em 4 de setembro de 1967.

 

O Rio Grande está meio estagnado em matéria de literatura, por culpa talvez dos homens da minha geração.”

Erico Verissimo em 4 de setembro de 1967.

 

Fonte: ZeroHora/Caderno DOC/Sergio Faraco/Escritor, autor de RONDAS DE ESCÁRNIO E LOUCURA, entre outros livros em 01/10/2017