MAIS DO MESMO EM NELSON
Professor e editor analisa o efeito das crônicas do ‘Anjo Pornográfico’ quando vão do jornal ao livro.
Mais do mesmo é o que hoje muitas vezes se escuta, sentado diante da TV, a ver e ouvir os chamados noticiosos. Nem os comentaristas da esgarçada vida político-social brasileira já não conseguem esconder a perplexidade diante das elocuções em geral, deseducadas, iletradas, inverossímeis e inacreditáveis que a maioria dos políticos costuma oferecer: sempre a mesma arenga, o mesmo lero-lero que é o requentar de argumentos recorrentes, desprezando a capacidade de entendimento dos ouvintes. Enfim, dessa gente o que se tem hoje é sempre mais do mesmo.
Pois não é que Nelson Rodrigues (1912-1980), o maior dramaturgo brasileiro – que recentemente apareceu para o público porto-alegrense com uma montagem de Jorge Farjalla de SENHORA DOS AFOGADOS (1947) –, também se pode encontrar mais do mesmo.
Nelson escreveu um inigualável teatro, em peças como VESTIDO DE NOIVA; BONITINHA, MAS ORDINÁRIA; PERDOA-ME POR ME TRAÍRES; ANJO NEGRO; ÁLBUM DE FAMÍLIA. Jornalista que era, igualmente escreveu crônicas de amplo sucesso entre os leitores dos jornais em que trabalhou. Esses escritos – textos que trazem ao leitor tanto entretenimento delicioso como um ideário perspicaz – podem ser classificados genericamente nas categorias de crônicas futebolísticas e crônicas do cotidiano. Consta ser desconhecido o número total desses textos.
Certamente ainda não surgiu por aqui outro cronista esportivo com o nível de originalidade de Nelson: principiava a crônica abordando um tema alheio ao futebol, digamos, discorrendo sobre as características do indivíduo que ele chamava de “o idiota da objetividade”, ou descrevendo uma prosaica cena de rua em que um grupo de pessoas, em que se despontava um psicanalista de renome, aguardava a abertura do semáforo para atravessar a avenida; e concluía o texto opinando sobre a condição de árbitro de futebol, ou descrevendo em detalhes o estilo solene e a perícia com que um dado jogador efetuava o arremesso lateral. Assim, as crônicas futebolísticas de Nelson para jornal obrigatoriamente não tratavam da atuação tática da equipe ou do desempenho técnico de jogadores numa determinada partida. Estabelecia, para mais além, relações entre as vicissitudes da vida vivida e o futebol. Produzia um texto que segurava a atenção do leitor pela singularidade do início e pela precisão e originalidade de comentarista ao final; entretanto, sempre mediante o fluxo existencial, com elementos que tipificavam a própria condição humana: as fraquezas, as vaidades, as vilezas.
As crônicas do cotidiano revelam a mesma criatividade e o mesmo talento de prosador. As que vieram sob o título da coluna jornalística A VIDA COMO ELA É… (1951), seguiram um modelo sugerido por Samuel Wainer, dono do jornal Última Hora, onde ele trabalhava então. Nessa coluna, um assunto que não passaria de mera notícia nas páginas policiais recebia de Nelson um tratamento ficcional: ao acontecimento real era conferido um envoltório de genuína narrativa de ficção, com elemento suplementares imaginários. Esses textos, quase contos curtos, fizeram sucesso durante vários anos.
É conhecida a prática editorial de cronistas e articulistas de renome na imprensa de reunir textos publicados num certo período e com eles estruturar um livro, com direito a sessão de autógrafos de lançamento. Há jornalistas que têm publicados vários livros com esse molde. (Meu amigo quase nonagenário, que desde sempre se nega a aderir às tecnologias de informação, que há décadas recorta com tesoura dos periódicos que assina os textos considerados mais interessantes, desdenha desse viés editorial: “Por que comprarei o livro contendo um conjunto de artigos, se já disponho, recortados e arquivados em minha biblioteca, dos que me interessaram?”)
Em 1961, Nelson Rodrigues reuniu cem entre as inúmeras excelentes crônicas da coluna A VIDA COMO ELA É… e as publicou em dois volumes na editora J. Ozon. Há poucos anos, a Nova Fronteira o reeditou em volume único. Essa editora também lançou em 2012 duas outras coletâneas: uma, de textos inéditos em livro, intitulada BRASIL EM CAMPO, organizada por sua filha Sonia; outra, Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo, escrita por Nelson sob o pseudônimo de Myrna.
O BRASIL EM CAMPO é composto por crônicas que tratam principalmente do futebol daquele passado, um livro especial que se lê com gosto. Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo é conjunto de textos (estruturado por Caco Coelho e publicado originalmente pela Companhia das Letras em 2002) escritos para o jornal Diário da Noite em 1949; essas crônicas eram respostas de Myrna a “consultas”, por cartas, de leitoras sobre temas conjugais, de amor, de fidelidade, de ciúme. Trata-se de livro em que a prosa é de um narrador feminino, mantendo, todavia, o estilo rodriguiano. Mais: não se pode saber em que medida tais textos de Myrna são todios fruto de consultas de leitoras reais, ou se em alguns relatos constituem ficção integral. Importante notar aqui sobre um descuido – até agora – imperdoável dos militantes no politicamente correto: Myrna contorna seus “conselhos” com um traço machista sob uma leitura de hoje. (Faz pouco tempo, houve uma vociferação daqueles sobre imagináveis conteúdos racistas em escritos de Monteiro Lobato.) É de admirar que ainda não se tenha ouvido protestos de feministas contra Nelson: nas páginas de NÃO SE PODE AMAR E SER FELIZ… (como em outras coletâneas de crônicas) o leitor encontrará incontáveis passagens com viés machista como “… a maior arte da mulher é ceder sempre, ou quase sempre.”; “… a personalidade da esposa é uma coisa muito relativa...”; “A mulher é uma escrava espontânea.”; “Que é o amor, para a mulher, senão a uma abdicação contínua, um incessante abandono de suas características pessoais?”.
E agora se chega ao objetivo essencial destas considerações, que está em A VIDA COMO ELA É… Quer se leiam essas crônicas em sequência, quer aleatoriamente, ao leitor restará a sensação de que elas não constituem um todo em que cada unidade guarde individualidade e que o todo seja ao mesmo tempo díspar e homogêneo. Impossível ler esse livro de cabo a rabo: o leitor não conseguirá chegar à sua metade sem se sentir plenamente saciado, já terá entendido que está diante sempre do mesmo, apenas com tênues variações de entrecho de uma para outra crônica entre as compiladas. Enfim, crônicas sequenciais que causam no leitor, em função das temáticas rigorosamente similares – paixões, amores irrealizados, sadismos, hipocrisias, assassinatos, adultérios, suicídios, sexo, proxenetismo –, a sensação de estar sempre lendo uma mesma (espetacular) narrativa.
Então, se são crônicas que cativaram quando publicadas periodicamente em jornal, não produzem o mesmo efeito em conjunto como livro. Trata-se de livro de valor como memória de um estilo, da cosmovisão do intelectual, mas não como livro “de leitura”; porque a cada nova crônica lida no A VIDA COMO ELA É…, ter-se-á uma impressão de déjà-vu, de se ter lido mais do mesmo.
Fonte: Correio do Povo/CS Caderno de Sábado/Carlos Alberto Gianotti (Professor de Física e editor. Escreveu “Um Rio Circunferencial” (WS Editor, 2012), contos curtos, e “Falar o que Seja é Inútil” (Editora Circuito, 2016), ensaios.) em 13/10/2018