LIVRO É TOUR DE FORCE LITERÁRIO
O gaúcho vive de sua diferença. Ser distinto de outros brasileiros, percebendo ou não essa discrepância, isso alimenta nosso jeito de ser, em maior ou menor grau.
O sujeito distraído, que nem presta atenção ao que fala, mas nasceu ou aprendeu a falar imerso na linguagem do Rio Grande do Sul, em qualquer de suas cidades ou lonjuras, mesmo ele um dia topa com alguém que, ao ouvi-lo dizer um par de palavras, lhe dá notícia clara e irrecorrível: “Mas você é gaúcho, não é?”.
Sim, eu sou mesmo, admito, muito prazer: falo bá, digo tri, exclamo tchê, portanto sou gaúcho.
Quando se trata de um sujeito autoconsciente, então, aí a diferença grita. Porque os gaúchos identificados com o gauchismo, em qualquer de suas versões – seja a ortodoxia tradicionalista, seja a vertente nativista, mais perto do popular ou das tradições elitistas, mais pela direita ou mais pela esquerda – esses não apenas falam diferente de todo o restante do Brasil como fazem questão de marcar essa diferença, que vem envolvida num gosto acentuado pelo sentimento de pertencer a uma cultura distinta, peculiar, inapagável (na versão ufanista, sempre abominável, isso se confunde com a fantasia de pertencer a uma cultura superior).
Por que e como nasceu tal singularidade linguística? De um lado, o fato de o Rio Grande do Sul ser fruto de uma mescla particular de elementos históricos, uma fronteira viva com os castelhanos, compartilhando com eles modos de vida e de trabalho, e uma geo-história indígena também singular, com índios gê, guarani e pampa, circunstâncias de que nasce uma linguagem também específica. De outro, o fato de ser o Rio Grande uma província longe demais das capitais, isolada por séculos e por isso propensa a desenvolver uma linguagem toda sua (antes do rádio, da tevê e da atual internet, que deixa tudo igual).
Vai daí, faz quase 200 anos que os intelectuais e poetas se põem a trabalhar com essa diferença, amassando esse barro para tirar poemas, contos, romances, canções – e dicionários. Desde o clássico Coruja, passando por muitos outros, até chegar aos atuais, muitos dicionários se ocuparam da linguagem particular do gaúcho, aquele tipo que nasceu na história como um trabalhador avulso que também guerreava e depois passou a ser cultivado como figura identitária, já despido dos traços abrutalhados de sua origem e revestido da aura positiva agora forte.
Mas nunca um dicionarista havia inventado um método ao mesmo tempo tão árduo como este que vemos agora no DICIONÁRIO POÉTICO GAÚCHO BRASILEIRO, de José Atanásio Borges Pinto.
Não, talvez o leitor não faça ideia do que este largo volume proporciona: 926 páginas abrigam milhares de verbetes, sempre explicando significado e uso (e algumas vezes origem) de termos gauchescos – sempre em versos. Sim: o autor, letrista de sucesso e fama, escreve ele mesmo pequenos poemas para definir cada termo. Versos rimados e ritmados, quase sempre.
Veja lá:
“Chacareiro ou chacreiro / é o pequeno criador, / é o que cuida de uma chácara, / é o pequeno agricultor.”
Ou:
“Melador é uma palavra / do linguajar campestre / e quer dizer a pessoa / que extraí o mel silvestre.”
Alguns compõem dois termos numa mesma quadra:
“Pelejar diz-se de pelear, / peleja diz-se da disputa, / da com fusão, da peleia, / do pugilato, da luta.”
Alguns são extensos, apresentando-se em poemetos que se espalham por várias estrofes, e alguns são coloridos por poemas de autor que não o dicionarista – e aqui o DICIONÁRIO passeia por uma infinidade de poetas, antigos e atuais. Mas tudo é sempre presidido por um senso impressionante de medida. Por certo não se trata de poesia propriamente dita, mas de descrições escritas em formas poéticas. O autor aponta, num texto de abertura, que foram mais de 25 anos cultivando esse material, até que chegasse a um patamar satisfatório.
Nem todas as definições alcançam o mesmo grau de elegância e precisão, como se pode esperar: mas o mero fato de o autor haver dedicado tanto esforço chama a atenção. Deverá ter sido prazeroso, mas deu trabalho insano – e o resultado é uma forma de bravata culta, um (como se dizia no tempo do francês) tour de force literário, uma preciosa relíquia para os cultores tanto do gauchismo, quanto para a tribo dos aficionados pelos dicionários.
Fonte: ZeroHora/Luís Augusto Fischer / Escritor e Professor de Literatura em 03/10/2016.