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Entrevista com Escritor Baiano, Itamar Vieira Jr
Entrevista com Escritor Baiano, Itamar Vieira Jr

"A GENTE PRECISA DESSACRALIZAR A LITERATURA", DIZ ITAMAR VIEIRA JUNIOR SOBRE BUSCA PELA DEMOCRATIZAÇÃO DOS LIVROS

Escritor baiano participou do Festival Fronteiras, em Porto Alegre

 

Um dos principais nomes da literatura brasileira, o escritor baiano Itamar Vieira Junior, 45 anos, trabalhou por duas décadas como servidor público em quilombos e áreas rurais, vivência que marca a sua obra. Desde que lançou o multipremiado Torto Arado, em 2019, passou a frequentar eventos literários, nos quais diz ter se tornado um "pregador" da leitura. 

 

“A gente precisa dessacralizar a literatura e tornar ela de fato popular, para que as pessoas tenham interesse, para que as pessoas leiam.”

ITAMAR VIEIRA JUNIOR

 

Em entrevista para Zero Hora após palestra que realizou no Festival Fronteiras junto do autor moçambicano Mia Couto, defendeu um esforço pela popularização dos livros e da própria escrita, e que territórios "historicamente subalternizados", como o Brasil e países africanos, compartilhem mais, de forma a se fortalecerem mutuamente.

Confira a entrevista:

 

Durante a palestra, você e Mia Couto fizeram uma intersecção entre a realidade dos países africanos e o Brasil. De que forma é possível  fomentar a relação entre essas nações?

Nós compartilhamos um passado que nos une pela história do Brasil, pela história da diáspora, pela colonização europeia nos nossos territórios. A gente compartilha no mundo uma posição muito parecida, muito semelhante. Estamos no chamado sul global. Então, são territórios historicamente subalternizados

Eu acho que essa intersecção é importante para que a gente se fortaleça, para que a gente, inclusive, crie mecanismos de união para enfrentar os desafios da vida moderna, da vida contemporânea, que estão aí: os desafios que são históricos, seculares, e os novos desafios. 

Então, é sempre bom poder compartilhar espaços como este, esses intercâmbios, para a gente ver que há mais coisas em comum entre nós do que diferenças. E isso pode ser um ponto de partida para que a gente estabeleça laços mais efetivos de solidariedade, de comunidade, que ainda precisam ser fortalecidos.

 

Quais são nossas principais semelhanças?

Só o fato de o Brasil e de todos esses países africanos, Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, compartilharem uma língua, que é a língua portuguesa, já tem um significado muito grande. Não é por acaso que a gente tem instituições, comunidades, que reúnem os países de língua portuguesa. 

Mas a gente precisa tirar isso dessa esfera mais burocrática e tornar isso efetivo para as pessoas, para que elas possam viver essa união, esses laços, e se fortalecer frente aos desafios que o mundo nos impõe hoje.

 

No Fronteiras você falou sobre pessoas que levam o livro para a roça, para ler no almoço, o que mostra que a leitura faz parte da vida mesmo de pessoas com origem simples, mas também sobre como é importante buscar a democratização desse hábito. Como se desencastela a literatura?

Durante muito tempo, eu acho que a literatura foi tida como uma expressão artística das elites. Até porque num passado não muito remoto, de dois séculos ou mais, com níveis de analfabetismo muito grandes que tínhamos, não só no Brasil, mas no mundo todo, a literatura era consumida na sua origem, por uma elite, mesmo. Mas hoje a gente melhorou os índices de educação e eu acho que a literatura já não está mais restrita a esse grupo. 

Pelo contrário, muitos editores, pessoas que vivem esse ecossistema do livro, da leitura, dizem que são as classes que não são elite, as classes B, C, muitas vezes D e E, que estão lendo, estão consumindo como podem esses livros. A gente precisa dessacralizar a literatura e tornar ela de fato popular, para que as pessoas tenham interesse, para que as pessoas leiam, para que as pessoas percebam que aquilo não é apenas uma cultura para ser "consumida" eventualmente: que leitura, literatura é educação. 

E nós nos educamos do dia em que nascemos ao dia em que morremos. Ou seja: a educação faz parte da vida do homem, da vida do ser humano. Qualquer ser humano vai se educar de inúmeras maneiras ao longo da vida. E a leitura pode fazer parte de todas as etapas da nossa vida. Ela não precisa estar nos espaços que nós elegemos ou que sacralizamos como espaços de referência da educação, que são a escola, a universidade. 

A leitura tem que estar no nosso dia a dia, no nosso cotidiano, porque assim pensamos melhor, conhecemos melhor o mundo à nossa volta e certamente vamos refletir melhor sobre eles e propor soluções para problemas que nos acompanham há séculos.

 

E a escrita, como é que se dessacraliza? Para não acontecer com outros o que aconteceu com você, por exemplo, de levar muitos anos até tornar pública a própria produção literária.

Eu acho que esse é um outro movimento importante. Se a gente conseguir formar um corpo de leitores, a gente terá espaço para que muitos também escrevam e possam compartilhar sua arte, sua expressão artística com mais leitores. Essa é uma maneira que nós podemos encontrar de dessacralizar a escrita, dizer que ela está ao alcance de todos. 

Eu sempre penso na Carolina Maria de Jesus, por exemplo, que era uma escritora que não teve uma educação formal, que trabalhou como empregada doméstica durante muito tempo e depois como coletora nas ruas, mas isso não impediu que ela transformasse os registros dela, do tempo dela, do espaço onde ela vivia, tudo isso inserido no nosso país em uma obra que é atemporal, que é lida 60 anos depois, como Quarto de Despejo, e ainda é apontada como uma referência sobre o Brasil pós-abolição, sobre o Brasil desigual. Isso mostra que a literatura não deve estar apenas nos espaços que elegemos como espaços sagrados do livro: ela pode estar ao alcance de todos.

 

Fonte:  Zero Hora/Isabella Sander em 02/06/2025