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Entrevista com Josélia Aguiar, Curadora da Flip
Entrevista com Josélia Aguiar, Curadora da Flip

ENTREVISTA COM JOSÉLIA AGUIAR

 

A FLIP SERÁ CADA VEZ MAIS PLURAL E DIVERSA”

 

Curadora da 16ª Flip diz ao CS que a Festa estará cada vez mais próxima do público em temas e discussões.

 

Pelo 15º anos, a histórica Paraty na Costa Verde fluminense se transforma num radar e farol do melhor que a literatura pode oferecer, a discussão de temas candentes e integração entre autores, leitores e outros agentes da área. A 16ª Festa Literária Internacional de Paraty, que ocorre de 25 a 29 de julho, tem Hilda Hilst como autora homenageada. Estão confirmados para o evento nomes como Fernanda Montenegro e Jocy de Oliveira para a sessão de abertura, a portuguesa Maria Teresa Horta, André Aciman, Leila Figueini, Selva Almada, Isabela Figueiredo, Alain Mabanckou, Igiaba Scego, entre outros autores.

 

A curadora desde 2017 é Josélia Aguiar. Nascida em Salvador (BA), Josélia vive em São Paulo há 21 anos, 12 dos quais dedicados à cobertura de literatura, mercado editorial e políticas públicas voltadas à promoção da leitura no Brasil para os principais veículos do país, como os jornais Folha de S. Paulo e Valor Econômico. Como curadora em 2017, Josélia deu à festa literária um diálogo maior com os temas candentes da atualidade como a diversidade de autores, gêneros e temáticas que melhor representam a literatura contemporânea mundial e questões atuais do Brasil e do mundo, com ações e autores que pretende potencializar nesta edição. Acompanhe entrevista com a curadora, que, como boa baiana, é estudiosa de Jorge Amado, tema do seu Doutorado na área.

 

 

Como será a característica da Flip nesta 16ª edição?

Ano passado, a Flip aconteceu na Praça da Matriz, com o palco principal na igreja e do lado do auditório, espaço onde todos assistem gratuitamente. O nosso homenageado, o Lima Barreto, era um autor que colocou a questão racial em primeiro plano. Na obra dele, tratava da questão e defendia a ideia de uma literatura popula, acessível, que as pessoas lessem e que se tornou um grande clássico brasileiro. Foi uma Flip mais próxima do ponto de vista físico com um programa que debatia uma literatura para todos, questões sociais e políticas. O período dele era um momento de Primeira República, que se pensava na noção de cidadania. Esta Flip irá manter os princípios que nortearam a de 2017, ou seja, os debates literários em primeiro plano, os autores falam de tudo, mas a partir da literatura a gente incorpora no programa principal tudo isto que na nova cena literária se chama literatura no palco ou performance, slam. A gente tem um programa plural, autoras mulheres na igual proporção a de homens, um percentual de autores negros maior do que a média histórica da Flip. É um programa que acaba surpreendendo as pessoas pelo que ele não reflete o que a gente está acostumado a ver nas livrarias e outros eventos. São livros que nem sempre estão colocados como grandes lançamentos. A gente traz autores estreantes e outros que deveriam ser mais conhecidos entre os que já são conhecidos. Nas mesas, a gente tem veteranos em diálogos com autores estreantes ou que têm trajetórias mais recentes.

 

 

Uma das autoras da Flip já estrve em Porto Alegre, a franco-marroquina Leïla Slimani, e assim como ela alguns nomes como Isabela Figueiredo, Igiaba Scego, Selva Almada tratam de questões identitárias e de violência relacionada às mulheres. Dá para definir um núcleo temático ligado ao feminino?

É menos que uma identidade, é quase uma anti-identidade o caso da LeÏla Slimani. Nasce num lugar, passam por outro, vivem num terceiro, às vezes falam vários idiomas, são de uma determinada origem e escrevem em outra. Escrevem no idioma onde elas estão e falam de outra cultura ou da sua originária. São autores multiculturais que apresentam a singularidade como característica. Em vez de tratar de uma identidade mais fixa, a gente apresenta autores que são pessoas múltiplas e que suas obras também refletem sobre o que é ser único, o que significa ter esta singularidade. São autores que tratam com muita liberdade estes temas. No caso da Leïla e do André Aciman, eles tratam com muita liberdade, sem tabu ou interdito as questões religiosas, relacionadas com o sexo, gênero. A maria Teresa Horta enfrentou a ditadura salazarista em Portugal quando começou a escrever por causa do teor erótico dos livros dela. É uma grande poeta, poetisa como prefere ser chamada, feminista. Você tem o Geovani Martins, um jovem que escreve com muita liberdade linguística, que experimenta o seu jeito, estilo, além do que está nas regras da gramática. Ele trabalha literariamente este lugar onde ele está. A gente está tentando não fechar a ideia de que é uma Flip que trata só de mulheres, porque acaba sendo um pouco um certo pré-conceito. A Hilda Hilst tratava de amor, de Deus, de morte, de sexo. São autores que enfrentam os temas da própria Hilda. Muitos trazendo inovações literárias, que eram muito caras à Hilda.

 

 

Você diz isto para fugir do rótulo de Flip feminina, assim como no ano passado disseram que era uma Flip negra?

Sim. Para alguns autores isto é delicado. Alguns deles querem falar de literatura. Não querem só levantar a bandeira A ou B. Se você pensar por exemplo, na russa Liudmila Petruchevskáia, representante da literatura moderna russa, prestigiadíssima nos principais circuitos literários. Ela, durante todo o regime stalinista, foi proibida de escrever e publicar. Ela escreve contos de horror e fantasia, mas que tratam de questões geopolíticas. O fato de ela construir estas histórias que não tinham um padrão aceitável pelo regime faziam com que ela fosse proscrita. São histórias de uma liberdade de estilo, de temática, que no momento no qual ela escreveu a levou à proibição. No entanto, ela enfrentou estes temas. Quem poderia imaginar que contos de horror e fantasia poderiam ser proibidos. Não há limites para a censura em regimes totalitários.

 

 

Queria que você falasse das mesas que tratam especificamente de Hilda Hilst durante a Flip.

Uma das grandes mesas será na sexta-feira, dia 27, às 20h, com a Eliane Robert e a Iara Jamra. Chama-se “A Santa e a Serpente”, com a apresentação da obra da Hilda pela Eliane e leituras da Iara Jamra. A Iara foi a atriz que viveu a Lory Lamb no teatro, a personagem mais famosa da Hilda. A abertura na quarta-feira, 25, à noite, será a leitura de trechos da obra da Hilda escolhidos pela Fernanda Montenegro. E a gente vai ter a apresentação de duas obras curtas da Jocy de Oliveira. São obras tão de vanguarda quanto à da Hilda só que na música. As duas são da mesma geração da Hilda. São duas artistas que ainda estão atuando com muita força e presença e de certa forma é uma noite que celebra a transgressão. Na quinta, às 10h, a Gabriela Greeb vai mostrar uma parte da pesquisa dela com os áudios da Hilda Hilst. Foram tentativas da Hilda de falar com mortos. Ela deixou gravadas estas fitas, gravou durante quatro, cinco anos. Estas fitas são verdadeiros diários dela. Ela tentava falar com estas pessoas, puxava os mais diversos assuntos. Ela procurava os autores que ela tinha acabado de ler e queria ouvir. Autores que ela já gostava ou que estava acabando de descobrir. Ela tentava falar com pessoas públicas e comentava coisas da vida e de literatura. A gente vai ouvir a própria Hilda falando coisas variadas e que a interessavam naquele momento de gravação das fitas.

 

 

E o que você pode falar da programação paralela à Flip?

A gente inventou no ano passado estas canjas literárias Flip. Autores conversam em lugares distintos, bares, restaurantes ou numa mesa qualquer, além da programação principal. A gente ainda está fechando estas canjas e vai divulgar mais perto da Flip. Paraty fica num clima muito agradável, informal e as conversas de literatura acontecem além do próprio auditório da Matriz. Ano passado a Festa estava muito vibrante, exatamente por causa destes acontecimentos além da programação principal. Também havia um público diferente em 2017. Era um público mais diverso. Todos comentavam que existia uma atmosfera mais vibrante. O sol também ajudou muito. Não houve chuva.

 

 

Em que a tua expertise de estudar a literatura brasileira do Século XX e principalmente a obra de Jorge Amado, objeto do teu Doutorado, te ajudaram neste jeito de conduzir a curadoria da Flip?

Eu fiz uma biografia do Jorge Amado, que será publicada ainda este ano. E o Doutorado é uma extensão deste trabalho. Eu estudo o diálogo dele com os escritores da América Latina. Sem dúvida, o que eu tive que pesquisar sobre história da literatura brasileira a partir de Jorge Amado, desde o ano de 2011, quando iniciei este projeto, eu pude aprender muito, conhecer muito sobre história literária brasileira e de alguma maneira porque um autor como Jorge Amado, que se torna popular, com personagens negros e histórias afro-baianas, tem tanta entrada com o público e porque, de certa maneira, ele é mal recebido na academia. Uma das perguntas que a gente pode fazer é até que ponto as histórias dele por serem afrobaianas não foram vistas como histórias que deviam ser contadas. Não falo isto em relação ao público e sim ao especialista, o acadêmico, que dizia que aquilo era folclórico. Se você for para a Bahia, as pessoas não acham que é folclórico e sim que é a vida delas sendo contada ali. Porque a vida dos outros é folclórica e a vida urbana dos grandes centros é considerada séria, a ser estudada. A ideia do folclore pode ser aplicada a tudo que não está no centro.

 

 

Que outros exemplos de rotulação de folclore ao que não está no centro do país você poderia dar?

Eu estou pensando aqui sobre o que diziam sobre as histórias do Erico Verissimo serem regionais. São histórias que se passam no interior do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre ou até em outros locais. Naquela época, a capital gaúcha já era um grande centro urbano com mais leitores e livrarias do que o Rio de Janeiro, por exemplo. Acaba sendo um pouco uma petulância do Centro achar que o que está fora dele está menos desenvolvido, menos urbanizado. Na mesma época em que o Erico escrevia, a Livraria do Globo de Porto Alegre era muito maior do que a José Olympio no Rio de Janeiro. Não tinham nem como comparar. E ele era o regionalista.

 

 

E este descentrar, olhar para o periférico, tem muito a ver com o que foi em 2017 e com o que será a Flip neste ano?

Pessoalmente tem muito a ver esta descentralização com o fato de eu ser baiana, estudar o Jorge Amado. Tem a ver com o Lima Barreto, homenageado no ano passado. Tem a ver com a cena literária brasileira contemporânea, que está se movimentando para que estes autores e esta literatura fora do centro também possa aparecer, ser discutida, ou seja, eu não teria conseguido fazer um programa plural se estes autores já não estivessem obtendo seu espaço, aparecendo nos mais variados locais, sendo publicados por pequenas editoras, por editoras estaduais, apresentando trabalhos de qualidade, conseguem fazer estes livros acontecerem, justamente pelas facilidades de divulgação do que é publicado pela internet. Hoje você não precisa mais estar no centro para produzir, publicar e divulgar seus autores. Se a cena não existisse, eu não poderia espelhar estes autores. Eu só espelho aquilo que estou vendo acontecer.

 

Fonte: Correio do Povo/CS/Luiz Gonzaga Lopes em 14/07/2018.