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Entrevista com o Escritor Roger Mello
Entrevista com o Escritor Roger Mello

ENTREVISTA COM O ESCRITOR ROGER MELLO

Um dos mais aclamados autores infantojuvenis do país acaba de lançar ESPINHO DE ARRAIA, seu 26º livro para esse público

"Palavra e imagem são a mesma coisa", diz o autor

LIVRO:  ESPINHO DE ARRAIA, editora Global, 44 páginas

 

"Mexer com a saudade de um tempo é tão bom", afirma o escritor indígena Yaguarê Yamã na contracapa da obra ESPINHO DE ARRAIA, novo livro de Roger Mello. Essa saudade a que se refere Yaguarê, autor de mais de 30 obras, é um tipo de mergulho nu baú de memórias de águas ancestrais e cristalinas. Lugar de travessia entre passado e presente, cujo destino é como uma flecha de lembranças a ser lançada para o futuro.

 

Ao ler ESPINHO DE ARRAIA, Yaguarê disse que se enxergou "nos tempos de infância, conversando com os amiguinhos da aldeia". E essa foi justamente a intenção de Roger, dito por ele mesmo na entrevista a seguir, concedida no dia do lançamento da obra em Caxias do Sul.

 

Roger Mello é um dos mais premiados escritores e ilustradores de sua geração. Já venceu o Hans Christian Andersen, considerado o Nobel da literatura infantil e juvenil, recebeu 10 troféus Jabuti e é considerado hors concours do Prêmio da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil de tantas vezes em q           eu foi agraciado. ESPINHO DE ARRAIA é o 26º livro da carreira como escritor. Além disso, já ilustrou mais de cem obras.

 

Se, para Yaguarê, "no cotidiano indígena não existem essas distinções do que é infantojuvenil, fábula e conto", o mesmo pode-se dizer da literatura produzida em palavras, sons, silêncios e ilustrações que vertem da mente criativa de Roger Mello. Para ele, palavra e imagem são indissociáveis, da mesma forma que não enxerga separação entre o real e o ficcional. Entenda o porquê neste bate-papo.

 

Quando você pensa na publicação de um livro, surgem antes as imagens ou a narrativa por palavras?

As duas coisas. Às vezes, vem primeiro a história, o texto verbal. Em outras, vem primeiro a imagem. Não é uma coisa previsível. Não é algo que eu planeje. E às vezes vêm as duas coisas juntas. Uma imagem com muita coisa escrita.

 

Indissociáveis?

Para mim, palavra e imagem são a mesma coisa. Então, esse grafar, esse rabiscar, tanto a palavra quanto a imagem, para mim... Muitas vezes ela surge ali, nesse estado premido do rabiscar, do grafar. Certa vez eu estava pesquisando sobre um escritor da cidade de Avos, no Egito, de 3 mil anos atrás, ele usava a mesma palavra para se referir ao ato de escrever e desenhar. Então ele fala algo como "eu sei escrever a forma do hipopótamo correndo". É como se ele dissesse "eu sei escrever a forma".

 

Como você definiria o sentido da ilustração e da palavra em uma obra?

A ilustração é uma imagem para o livro. E a palavra no livro é diferente da palavra em outros lugares.

 

Pode dar um exemplo?

JARDINS, um livro em que a Roseana Murray me mostrou os textos, a poesia, e eu fiz a ilustração. Depois, ela viu o DESERTOS, que foi um caderno de anotações visuais, com algum texto verbal também, e me perguntou: "Posso ilustrar com palavras?" E foi exatamente isso que aconteceu. Por exemplo, tinha uma ilustração que são três mulheres conversando no vento, num a localidade do Marrocos. Quando ela escreveu o texto parecia que a imagem tinha ficado mais sintética. Daí falei para ela: "Agora que tem a poesia que você trouxe, é impressionante, porque acrescentou elementos gráficos, mas a sensação que eu tenho é de que a página está mais leve, o vento ficou mais forte".

 

E quando surgem as encomendas de ilustração. Como conciliar esse processo criativo?

Tem o fator vento, mas tem o fator vela, que é você driblar o vento. E acho que esse fator vela é mais forte. Não acredito nesse valor da inspiração. Ela até pode surgir. Ela surge como uma coisa de ofício.

 

Ou surge a inspiração por ter sido instigada por algum insight, não é?

Isso. E aí, quando vem a inspiração, o trabalho, o ofício de escrever, o ofício de desenhar, é mais forte. Porque aí você vai ter de ir atrás desse caminho. É como uma pesquisa. Se estou escrevendo alguma coisa que tenha uma relação histórica, por exemplo, se estou fazendo um livro agora sobre um submarino, que passou nas costas da Bahia e do Sergipe, o U-507, trata-se de um dado histórico, e a pesquisa vai ser importante. Mas eu não posso deixar a pesquisa ser maior do que a ficção. Então, tenho alguns dados e me dedico a inventar tudo. E depois eu vou checar (risos). É impressionante como 85% das coisas estão ali. Aí eu fico livre para inventar 25% (risos).

 

Você costuma tecer narrativas entre o real e o ficcional. É uma tendência ou um processo natural para você?

É muito interessante isso. Da mesma forma que falamos da palavra e da imagem antes, a separação entre o real e o ficcional, para mim, não existe. Sobre ESPINHO DE ARRAIA e CLARICE, em que escrevi sobre a minha infância em Brasília, sempre digo: as coisas mais loucas aconteceram de verdade (risos). Minha tia jogando um livro, amarrado em uma pedra, no lago Paranoá, para que as pessoas não vissem o livro subversivo e não prendessem a prima, isso é real! Mas a passagem de um carro, de uma casa para a outra, eu tive de criar. Não acho que nada seja absolutamente inventado.

 

E essa discussão sobre literatura infantil ser só para criança ler?

Na verdade, essa discussão é bem ampla, infinita. Tem um livro que se chama DÁ UM SORRISO PRA TITIA (de Diane Paterson). Então, é um nenezinho, sempre na página direita. E, na página da esquerda, tem a imagem da titia, que diz: "Dá um sorriso pra titia?" Aí, tá vendo, você sorriu (risos). E segue a história, o nenê sem sorrir. E aí ela fala assim: "Se você sorrir, eu trago um doce". E o menino com a mesma cara. Ela faz de tudo "se voc~e não der um sorriso para a titia, a titia vai embora e não volta nunca mais". Aí ela vai embora e então ele sorri (risos). Entendeu? Isso tem um poder avassalador, não trem um adulto que não entra nessa história.

 

É como se houvesse um poder que nos transporta para dentro de uma história, que nos faz entrar no livro, independentemente de ser literatura infantil ou adulta.

É exatamente isso. E quem ama livro, ama essa coisa toda.

 

Volta e meia alguém aparece e sentencia: "O livro vai morrer". Aí vem a pandemia e no mundo todo, inclusive no Brasil, nunca se vendeu tanto livro...

É como o samba, como diria o Paulinho da Viola: "Só se foi quando o dia clareou". Ele fala do futuro no passado. "Só se foi quando o dia clareou." É lindo isso, não é? Eu acho ele um gênio.

 

Você disse que ESPINHO DE ARRAIA, que traz uma história fantástica relacionada à floresta Amazônica, foi elaborado em cerca de 10 anos. A Amazônia está em evidência, atualmente, por diversos motivos. Fez mais sentido publicar o livro agora?

Eu queria fazer muito um livro sobre a Amazônia. Para mim, a Amazônia é um lugar muito semelhante à literatura para a criança: ali, o personagem animal tem a mesma força do que o personagem humano. Isso sempre foi muito importante para mim quando criança: respeitar o personagem animal como alguém que tem vontades. Eu acredito, verdadeiramente, que as crianças não fazem distinção entre animal e gente. Eu queria isso no livro. Por exemplo, a fruta matamatá é também o nome da tartaruga-matamatá. Há muito dessa confusão da palavra, e o livro todo é em diálogos, com oito crianças falando.

 

E funciona bem essa estrutura dos diálogos, fica bem marcado quem é quem.

Amo diálogo, sou do teatro. Preciso caracterizar a criança que pisou no ferrão da arraia e que ou ela delira, ou narra o que aconteceu de verdade, ou inventa. São os três planos da narração amazônica, entendeu? Tudo está muito próximo do irreal. Mas é um conto de fadas sem fadas, porque não precisa de fadas. Não colocamos glossário, mas há as imagens para que a Amazônia venha com todos os seus segredos. E como bem sintetizou Yaguarê Yamã (autor indígena), na contracapa do livro: "Li esta incrível história e me vi nos tempos de infância, dentro do livro, conversando com amiguinhos da aldeia, num enredo bem amazônico". É isso!

 

SAIBA MAIS

Vencedor de 10 Jabuti e do Prêmio Hans Christian Andersen, considerado o Nobel da Literatura Infantil e Juvenil, Roger Mello nasceu em Brasília e vive no Rio de Janeiro. Tem 57 anos de idade e 26 livros lançados, sem contar aqueles para os quais fez apenas ilustrações. Entre os mais premiados e vendidos estão MENINOS DO MANGUE (2001), O GATO VIRIATO (2002), A FLOR DO LADO DE LÁ (2004) e CLARICE (2019). São marcantes em seu trabalho a dramaticidade do desenho e o espírito lúdico das histórias, em geral marcadas por um clima brasileiro e alegre, o que inclui interpretações de lendas e de histórias do folclore nacional.

 

Fonte: Jornal Zero Hora/Caderno DOC/Marcelo Mugnol (Marcelo.mugnol@pioneiro.com) em 11/06/2023