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Entrevista com a escritora Ana Maria Machado
Entrevista com a escritora Ana Maria Machado

COM A PALAVRA:  ANA MARIA MACHADO

Escritora, 81 anos — Imortal da ABL, é uma das autoras mais lidas e premiadas do país, sobretudo por sua obra infantojuvenil

"Há mais crianças leitoras do que adultos leitores no Brasil."

 

Ocupante da cadeira nº 1 da Academia Brasileira de Letras, Ana Maria Machado escreve livros para adultos, crianças e adolescentes, já atuou como jornalista, foi professora de Literatura Brasileira na UFRJ e na PUC-Rio e de Língua Portuguesa na Sorbonne, em Paris.  Na França, doutorou-se em Linguística e Semiologia, orientada pelo célebre semiologista Roland Barthes. É uma escritora das mais versáteis da literatura brasileira. Porém modesta:

— Não há nada demais NISSO. Quem cozinha, um dia faz batata frita, no outro faz batata assada. É a mesma coisa.

Multipremiada, inclusive com um Prêmio Hans Christian Andersen, considerado o Nobel da literatura infantojuvenil, ela tem mais de cem livros publicados, entre os quais MENINA BONITA DO LAÇO DE FITA, BISA BIA, BISA BEL E CAMILÃO, o COMILÃO.  O acesso à literatura na infância é uma das principais lutas da escritora carioca, que esteve em Porto Alegre especialmente para visitar a exposição em homenagem a Marcel Proust, em cartaz na Biblioteca Pública do Estado.  Foi quando ela concedeu a seguinte entrevista.

 

A senhora marcou e ainda marca a infância de muitas crianças por meio da literatura. A sua também foi marcada pelos livros?

Tive uma infância marcada por histórias. Às vezes histórias orais, que a minha avó contava, às vezes histórias que liam para mim e que depois, quando aprendi a ler, eu li também... Eu e meus irmãos fomos crianças leitoras, porque meu pai era jornalista e minha mãe, professora. Então, líamos desde pequenos. Posso dizer que sempre me alimentei de histórias.

 

Esse contato desde cedo com os livros a influenciou a se tornar escritora?

Sim e não. Claro que teve importância, mas somos nove irmãos e eu sou a única escritora. Então, não é determinante.

 

Embora tenha obras voltadas ao público adulto, foi pelo seu trabalho de viés infantojuvenil que a senhora alcançou a consagração. Como se deu isso?

Na verdade, eu escrevi mais páginas para adultos do que para crianças. Mais títulos para crianças, mas mais páginas para adultos. O que acontece é que há mais crianças leitoras do que adultos leitores no Brasil. Há toda a questão do incentivo nas escolas, o fato de as tiragens de livros infantis serem muito maiores, uma série de coisas que explicam isso.

 

Por que esses leitores se perdem no meio do caminho?

São várias razões, é algo muito complexo. Pede uma conferência inteira para explicar isso. Se eu tivesse que resumir, diria que é porque, depois do Ensino Fundamental, ou seja, no Ensino Médio, em geral os professores não leem mais com os alunos. Então, os adolescentes vão deixando de ler. Também falta exemplo, pois o que faz a gente se interessar por uma série de coisas é o exemplo que a gente recebe. Quando os adultos, perto do adolescente, não estão nem lendo, nem falando sobre livros, esse adolescente acha que, para crescer, tem de parar de ler.

 

E por que a senhora decidiu olhar para esse público?

Porque, em 1969, estavam fazendo uma revista nova em São Paulo, a revista Recreio, voltada para as crianças. Estavam procurando autores e me pediram para experimentar. Eu nunca tinha pensado em escrever para crianças, mas acabei escrevendo. Os leitores gostaram, os editores gostaram e eu também gostei de explorar esse nicho. Interessou-me a possibilidade de fazer uma literatura de qualidade para crianças. Uma literatura que fosse brasileira, oral, familiar, sem muita dificuldade e com uma linguagem que aparentemente fosse mais simples. Eu diria que o desafio da linguagem foi o que me fez continuar escrevendo. Comecei por ali e continuei.

 

Seu primeiro livro infantojuvenil foi BENTO-QUE-BENTO-É-O-FRADE, de 1977 (saiu só um ano depois de sua estreia na literatura adulta, que havia sido com RECADO DO NOME, sobre Guimarães Rosa). A partir dali a senhora nunca mais parou, acompanhando crianças de épocas distintas. O que percebe de diferente entre as crianças dos anos 1970 e as de agora?

Ao escrever, eu não sinto muita diferença. Acho que a distinção que existe diz respeito ao cenário, aos objetos que fazem parte da vida da criança, aos hábitos, ao que está em volta dela. A criança, em si, continua a mesma ao longo desses anos todos. Os problemas, o medo do abandono, o medo do escuro, as alegrias da vida, o gosto pela amizade, a vontade de brincar, a vontade de mexer na terra, todas essas coisas que fazem parte da infância continuam as mesmas. Era assim há 2 mil anos e é assim ainda hoje. É claro que antes não se tinha toda essa tecnologia, mas intrinsicamente o ser humano é o mesmo de sempre. Tanto a infância quanto a idade adulta continuam iguais.

 

Aos 81 anos, qual a sua estratégia para identificar as pautas e os anseios das crianças e continuar fazendo sentido para elas?

Acho que é porque venho de uma família muito grande. Sou a mais velha de nove irmãos, isso pelo casamento dos meus pais. Porque depois meu pai casou de novo e teve outros dois filhos. Então, eu sempre convivi com diferentes idades. E aí eu casei, tive filhos, tive sobrinhos, tive netos, tive sobrinhos-netos, e me comunico com eles, mesmo que a gente viva em Estados diferentes. Eles me mandam mensagens, me contam coisas, enfim, a gente se gosta muito. Acho que é pelo afeto que me mantenho ligada às novas gerações.

 

Além de conversar com crianças de diferentes épocas, sua literatura conversa com crianças de diferentes culturas, pois suas obras já foram traduzidas para diversos países. Acredita que há algo que seja comum à infância em qualquer lugar do mundo?

Sempre tive o hábito de viajar para conversar com os meus leitores, mas hoje em dia saio menos. A partir da pandemia, simplesmente parei de viajar – e ainda não retomei essa prática.  Essa vinda para Porto Alegre está sendo a minha primeira viagem desde o início da pandemia, ACREDITA? Mas o que percebo é que aquilo que nos une é muito maior do que aquilo que nos separa, é muito mais significativo e muito mais importante.  Vejo que as perguntas que as crianças fazem sobre um determinado livro são as mesmas, seja na Suécia ou no continente africano. Digo isso a partir de um exemplo concreto: tenho um livro sobre o qual conversei com crianças em Angola e em Estocolmo, e elas perguntaram exatamente as mesmas coisas.  Então, digo com convicção que a gente é muito mais parecido do que diferente, independentemente da origem.

 

Como é para a senhora perceber que consegue tocar crianças de diferentes culturas?

É bonito, muito emocionante, porém não creio que aconteça por eu ser uma autora, mas apenas por eu ser uma pessoa. É como quando você viaja para outro lugar, conversa com um motorista de táxi e descobre que vocês têm inúmeras afinidades, mesmo sendo alguém que você acabou de conhecer e vive em outro país. Ou seja, somos diferentes, mas parecidos. Isso é algo que eu acho muito bonito na humanidade. Acredito que devemos prestar mais atenção naquilo que nos iguala do que naquilo que nos separa, sobretudo em um momento como este em que estamos hoje, com guerras em curso, polarizações exacerbadas e radicalismos. Precisamos muito valorizar o que nos aproxima.

 

De onde vem esse hábito de conversar com os seus leitores? Essa troca a alimenta de alguma forma?

Alimenta, mas não de uma maneira utilitária. Não é que eu vá escrever sobre isso ou que me dê ideias para um livro. É algo que me alimenta como ser humano, me enriquece emocionalmente e culturalmente. Com criança, é sempre um encontro mais afetivo, lírico, poético, inesperado e espontâneo. O meu próprio filho uma vez me disse, quando tinha uns sete anos, que eu não era a escritora favorita dele, que o favorito era o Origenes Lessa. Perguntei o porquê, e ele respondeu: "Porque ele tem ideias que eu nunca havia tido" (risos).  É tão bom isso, sabe? A criança tem uma verdade única, a criança é isso. Já com adulto, o encontro é sempre algo intelectualmente mais desafiante. Às vezes o leitor chega com uma reação que eu não esperava, que me obriga a ver o outro lado e me mostra que a palavra guarda também um sentido que eu não imaginava. Isso me faz pensar no quanto a linguagem é milagrosa e que ela pode unir e fazer entender, não só fazer brigar.

 

Quando a senhora vai escrever para crianças e para adultos tem processos criativos diferentes?

É bem parecido, mas existe uma complexidade maior em um livro que tem mais personagens, mais situações desafiantes, só que às vezes ele pode ser um livro para jovens, não necessariamente para adultos. A minha atitude de respeito pelo que estou escrevendo e por quem vai ler aquilo, a rotina de sentar pela manhã em frente ao computador e escrever até cansar, e no dia seguinte reler e escrever de novo, é sempre a mesma. A rotina não muda, seja quando escrevo um livro para crianças ou quando escrevo para adultos.

 

Suas inspirações vêm dos mesmos lugares?

Nunca fui muito de ter inspiração, o que surgem são temas, que têm a ver com o que está me preocupando na vida naquele momento. Há temas que eu desenvolvo de uma maneira para adultos e de outra para crianças. Também acho que tenho alguns temas recorrentes na minha obra: a liberdade, a rebeldia... Eles estão presentes em praticamente todos os meus livros, seja para adultos ou para crianças.

 

O acesso à literatura na infância é uma das suas principais bandeiras.

Sim, porque é um direito que as pessoas têm. A literatura é uma herança da humanidade, um patrimônio de todos. Dos livros gregos àqueles que estão sendo lançados hoje, todos são nossos. É algo que não pode ser negado à população.

 

Nesse sentido, como a senhora avalia a política cultural nos últimos anos no país?

"Avaliar" a política cultural não é um verbo que possa ser usado no caso do governo de Jair Bolsonaro, porque deriva de valor. E não houve nada valioso nos últimos quatro anos. Tudo o que foi possível fazer para desmanchar a natureza e a cultura esse governo fez. Seja em relação à Amazônia, ao Pantanal, ao Cerrado e ao Pampa, ou em relação ao teatro, à música, à literatura e ao cinema. Foi uma política de destruição.

 

Esse período também foi marcado por uma proposta de taxação dos livros ancorada no entendimento de que se trata de bens culturais consumidos predominantemente pelas elites. O que a senhora pensa sobre isso?

Isso foi uma das maiores bobagens que já vi, um absurdo. Acho que a gente não deve nem perder mais tempo falando sobre isso, sobre esse período que acaba de terminar, porque não vale a pena. Devemos arregaçar as mangas e reconstruir as coisas, não adianta mais ficar lamentando. O Brasil já teve ótimos projetos de incentivo à leitura e facilitação do acesso ao livro, e acredito que eles serão retomados. Mas também precisamos de apoio à educação, para que os professores possam dar um salto nas suas formações, ganhar mais, se dedicar mais... Reconstruir é uma coisa muito complexa, mas tem de ser feita.

 

O que a senhora espera dos próximos anos, especificamente desse período do governo Lula?

Espero que seja melhor, e que ele não cometa os mesmos erros, porque cometeu alguns. Acredito que foi o fato de ter errado aqui e ali que provocou essa expansão tão grande do outro lado (bolsonarismo), inclusive.  Precisamos arregaçar as mangas e trabalhar, mas com a humildade de passar a limpo aquilo que foi feito no passado e pode não ter sido adequado.

 

Essa sua primeira viagem pós-início da pandemia, a Porto Alegre, deu-se com o objetivo de visitar a exposição alusiva ao centenário da morte de Marcel Proust (1871-1922), completado no ano passado. Qual a sua ligação com a obra de Proust?

Primeiro, quero dizer que a exposição está linda, emocionante, todos devem vir vê-la. O Proust é um autor admirável e que faz parte do patrimônio de todos nós, então, acho importante que ele seja valorizado. Eu o li pela primeira vez aos 18 ou 19 anos, por meio das traduções feitas na Editora Globo de Porto Alegre. Fui lendo uma por uma das traduções feitas por Mario Quintana, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira. Só muito mais tarde fui ler e reler Proust em francês. Acho importantíssimo que se tenham várias traduções diferentes de autores como ele, para que as obras estejam ao alcance de todos.

 

A senhora parece bastante próxima de Proust. Há alguma semelhança com a sua literatura, ou alguma inspiração sua na literatura desse autor?

Não, nenhuma, nem o estilo, nem os parágrafos grandes, nem a atitude, nada. O (escritor) Paulo Mendes Campos (1922-1981) fazia uma distinção entre artistas que a gente ama e artistas que a gente admira. O Proust é um artista que eu admiro. Eu li toda a obra dele, anotei, estudei e posso dizer que conheço b em, mas não é alguém que eu esteja relendo o tempo todo. Já um autor como Albert Camus (1913-1960), esse devo ter lido a obra inteira umas cinco vezes ao longo da vida. O Camus é um autor que eu amo, o Proust é um autor que eu admiro.

 

Ainda falando em traduções, como a senhora se relaciona com as dos seus livros? Costuma acompanhar o processo de lançamento em outros países?

Nem sempre são para línguas que eu consigo entender, pois tenho obras traduzidas para mandarim, coreano, árabe, sérvio... Quando compreendo, eu procuro acompanhar, sim. Por exemplo, A AUDÁCIA DESSA MULHER, um romance meu, está agora sendo traduzido na Itália. Eu estou me correspondendo com a tradutora, respondendo às dúvidas dela.  Quando esse livro foi traduzido para o francês, também dialoguei muito com a pessoa responsável. E foi uma ótima experiência. Eu gosto de manter essas trocas, embora nem sempre seja possível.

 

Fonte: Jornal Zero Hora/Caderno DOC/Camila Bengo (camila.bengo@zerohora.com.br) em 12/02/2023