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Entrevista com Ferreira Gullar
Entrevista com Ferreira Gullar

“A POESIA NÃO TEM MAIS QUE SER POLÍTICA”

 

ENTREVISTA:  FERREIRA GULLAR

 

Aos 85 anos, o poeta vivo mais celebrado do Brasil está em silêncio – mas não tanto.  Há cinco anos sem lançar poesia (e sem escrevê-la, como revela nesta entrevista), Ferreira Gullar fez de seu trabalho o tema de AUTOBIOGRAFIA POÉTICA E OUTROS TEXTOS, lançado pela editora Autêntica.  No livro, Gullar recorda e ao mesmo tempo analisa as principais etapas de sua carreira: a consagração com A LUTA CORPORAL (1954), a ligação e o rompimento com o movimento concretista, o exílio, a circunstância de se tornar uma voz de resistência durante a ditadura com o POEMA SUJO (1976).  Ao mesmo tempo, um de seus livros mais inclassificáveis, CRIME NA FLORA, escrito nos anos 1950 e publicado em 1986, está sendo relançado pela José Olympio.  Convidado da versão paulista do Fronteiras do Pensamento, Gullar conversou com o PrOA por telefone.

 

O senhor está lançando Ferreira Gullar:  Autobiografia Poética, alinhavando memórias e reflexões sobre sua trajetória como poeta, seus livros, sua relação com a poesia.  Que impulso o levou a esse olhar para o passado?

Tenho, através de entrevistas e de crônicas, falado a respeito dos diferentes momentos do meu trabalho como poeta.  Mas nunca tinha feito um texto que desse, na íntegra, conta de todo o processo.  Então achei que seria bom escrever algo que contasse desde os primeiros momentos de minha experiência poética até o momento atual.

 

 

 

Na época em que lançou EM ALGUMA PARTE ALGUMA (2010) o senhor comentou, em entrevista para ZH, que talvez aquele fosse seu último livro de poesia, porque não havia sido tomado mais pelo “espanto” que dá origem a seus trabalhos.  A situação mudou?

Na verdade, seja por que razão for, não se trata de uma decisão minha.  Eu não decidi não fazer mais poesia, isso seria uma loucura.  Eu percebi, já naquela época, que não estava mais motivado a fazer.  E como o espanto foi se tornando cada vez mais raro, não voltei a fazer.  A verdade é que faz cinco anos ou mais do lançamento de EM ALGUMA PARTE ALGUMA e eu não voltei a escrever.

 

Não começou nenhum poema?

Nenhum durante todo esse tempo.  E não me sinto motivado a fazer.  Agora, se houver o espanto que faz a poesia nascer, escreverei, porque é um dos maiores prazeres que tenho na vida.  Não houve mais espanto.  Por que, não sei, mas a vida é assim, as coisas mudam, a pessoa muda em sua relação com a vida.

 

Essa autobiografia poética é, então, uma tentativa de fazer um balanço em um momento em que o senhor parece ter encerrado seu trabalho com a poesia?

É verdade.  No começo, não percebi, mas depois comecei a me dar conta de que talvez eu tenha escrito esse livro para voltar àqueles momentos em que a poesia era a coisa mais importante do meu trabalho.

 

 

                          

 

Mas não é seu primeiro “silêncio”.  Após a LUTA CORPORAL (1954), por exemplo, o senhor escreve um livro estranho, CRIME NA FLORA, que está sendo reeditado.

Ali era o contrário.  Como eu tinha desintegrado a linguagem na LUTA CORPORAL, aquele livro foi a tentativa de voltar a escrever.  Eu não podia voltar a escrever poesia.  Então comecei a fazer uma coisa aleatória, um livro sem rumo (Crime na Flora foi escrito em 1954 e publicado apenas em 1986).  O que me importava ali era romper o silêncio e encontrar o caminho da expressão.  E deu resultado.  Escrevi durante meses, e, no meio disso, nasceu o movimento da poesia concreta, que mostrava outros meios de se expressar.  A poesia concreta tem uma estrutura visual, não discursiva, então eu não precisei desse discurso para voltar à poesia.

 

O senhor já escreveu um livro de memórias sobre seu período no exílio.  Já pensou em fazer uma autobiografia mais tradicional?

Não.  Não farei e não tenho a menor vontade.  Eu escrevi o RABO DE FOGUETE (escrito nos anos 1970 e publicado em 1998) porque aquele era um momento especial de minha vida.  Eu estava fora, no exílio, e tive necessidade de contar o que foi aquele período de minha vida.  Mas autobiografia não tenho vontade, não.

 

Seu livro também recolhe textos teóricos e entrevistas.  Em uma delas, de 1965, o senhor diz que só o “corpo a corpo com a vida, a identificação com os problemas do povo” poderiam fazer a poesia digna do seu tempo.  Revelando esse material, o senhor ainda pensa assim ou algo mudou em sua concepção?

Algumas coisas mudaram, porque a questão da prevalência do político na poesia mudou, a poesia não tem mais que ser política.  Hoje não faço poesia política.  Naquele momento, da luta contra a ditadura, era uma coisa necessária.  E dentro desse caminho incluí que não se pode fazer política ao fazer um poema.  Antes de ser político, o poema tem de ser poético.  Tem de buscar a qualidade.  Meus primeiros poemas têm menos qualidade, mas pouco a pouco fui desenvolvendo a linguagem para que tivesse qualidade, mesmo político.

 

O senhor fala em seu livro que boa parte de sua carreira foi a busca pela linguagem como uma máquina de signos.  Hoje se fala a sério de experiências com máquinas programadas para compor música e poesia.  O que pensa disso?

Já ouvi falar, mas não conheço.  Acho difícil.  Minha visão é que a poesia nasce porque o mundo não está plenamente explicado.  O mundo está só provisoriamente explicado, porque ninguém poderia viver em um mundo sem completo sentido, mas, de vez em quando, a vida mostra que não está tudo explicado, e daí nasce o espanto, a iluminação de uma coisa banal na qual se revela o mistério da existência, a beleza da vida.  Uma poesia que não tenha nada a ver com isso, que nasça do computador, acho difícil ser poesia.  Mas todo mundo tem o direito de tentar fazer as coisas.  Pode ser que o fator da probabilidade funcione de uma maneira que resulte em criar poesia.  Não me oponho a qualquer experiência nova.

 

O senhor está em um ponto da carreira em que é constantemente apontado como o maior poeta vivo do Brasil e o nome que o país teria para um Nobel.  Que efeito isso tem sobre o seu trabalho?

Não embarca nessa.  Agora, não posso fingir que não é gratificante para mim as pessoas gostarem do que eu faço e me considerarem um poeta de qualidade, importante e tal.  Claro que isso é bom.  Mas com esse negócio de maior poeta, a resposta apropriada é a de Drummond:  “Maior poeta?  Como você mediu isso?”.

 

Fonte:  ZeroHora/Carlos André Moreira/Caderno PrOA/ em 04/10/2015