"UMA REDAÇÃO ESCOLAR É MUITO MAIS DO QUE UMA REDAÇÃO ESCOLAR", DIZ MIA COUTO EM CONVERSA COM ITAMAR VIEIRA JUNIOR NO FESTIVAL FRONTEIRAS
Painel com os dois escritores encerrou a programação do dia no Teatro Simões Lopes Neto nesta sexta-feira
Uma das principais atrações do dia no Festival Fronteiras, o encontro entre os escritores Mia Couto e Itamar Vieira Junior trouxe reflexões sobre o que de melhor a dupla faz: contar histórias.
Para um Teatro Simões Lopes Neto lotado, o autor brasileiro e o autor moçambicano tiveram o desafio de falar sobre como narrar o mundo contemporâneo nesta sexta-feira (30). Mia Couto lembrou de uma vez que, no ensino primário, em que um professor pediu uma redação para os alunos.
— Quando chegamos com as nossas redações, o professor disse que também tinha feito um texto. Ele parecia um menino desamparado, mostrando a redação à turma. Ele havia escrito um texto com o título "As mãos de minha mãe", descrevendo as mãos da mãe dele. E foi aí que eu, que era filho de poeta, percebi que uma redação escolar é muito mais do que uma redação escolar — recordou.
Para Mia, é necessário que a literatura não abandone aquilo que é inerente a ela: a oralidade.
— O momento de contar histórias precisa existir em todas as casas. O livro vem depois. Ele vai encontrar seu caminho.
A dupla falou sobre a herança compartilhada da literatura de ambos os países, a partir de escritores como Jorge Amado, que ressaltava a importância dos países africanos na formação do Brasil.
— Talvez eu e Mia compartilhemos a mesma filiação literária — arriscou Itamar.
O colega de profissão concordou e lembrou de uma vez em que trouxe justamente esse ponto de vista em um evento no Brasil.
— É importante dizer o quanto Jorge Amado foi fundamental na formação literária de todos os países de língua portuguesa. Jorge Amado autorizou a falar dessa herança africana — destacou Mia Couto.
Itamar apontou para a relevância da literatura no processo de decodificação do que se sente:
— Lembro do maravilhamento que senti quando comecei a ler, quando criança: descobri que a gente pode encontrar palavras para aquilo que sentimos. É difícil para uma criança explicar o que sente mas, se tem esse contato inicial com a palavra, ela pode descobrir nomes, e, com isso, consegue compartilhar aqueles sentimentos.
Na opinião do escritor baiano, ainda que haja críticas com relação a um suposto identitarismo existente hoje na literatura contemporânea brasileira, narrar o contemporâneo às vezes demanda que o passado seja buscado, de forma a se compreender por que algumas coisas acontecem do modo como acontecem – o motivo da persistência do racismo estrutural na sociedade brasileira, por exemplo, que Mia diz não existir da mesma forma em Moçambique.
— Venho de um país que tem algo a dizer sobre isso, porque rompemos com o nosso passado colonial, o que não aconteceu no Brasil. Estamos, do ponto de vista de etnia, muito mais avançados do que o Brasil, e isso se traduz no cotidiano. Nas 28 línguas indígenas de Moçambique não há uma palavra para definir etnia. É uma realidade completamente distinta do Brasil — pontuou o autor.
O mesmo acontece com a natureza, que também não possui termo próprio nos idiomas moçambicanos. O motivo, na visão de Mia, é que não se dá nome para algo que não é distinguido pelas pessoas com algo externo a elas: a natureza é elas.
Itamar, apesar de ter escrito ao longo de toda a sua vida, só publicou o primeiro romance, o multipremiado Torto Arado, aos 40 anos – era servidor do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e escrevia quando podia. Tudo mudou quando venceu o Prêmio LeYa, em 2018, que destacou a sua obra. Hoje, se diz um "pregador" da literatura.
— Num mundo em que muitas vezes se celebra a morte e não se celebra as diferenças, a literatura faz o contrário. A leitura é algo tão corporal, humano, nosso. Não é só ler: a gente empresta o corpo inteiro para escrever uma história. Quando eu escrevo eu me arrepio, me emociono. Ler é viver. Leiam — recomenda o baiano.
Fonte: Zero Hora/Isabella Sander em 30/05/2025