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Pela Liberdade do Conhecimento
Pela Liberdade do Conhecimento

PELA LIBERDADE DO CONHECIMENTO.

 

Na contramão das pressões conservadoras para impedir a discussão sobre identidade de gênero nas escolas brasileiras – que nesta semana foi suprimida do Plano Municipal de Educação de São Paulo, assim como já havia ocorrido na votação na Câmara de Vereadores de Porto Alegre e na Assembleia do Rio Grande do Sul – uma experiência protagonizada por uma instituição pública da capital revela como o acolhimento às diferenças pode ser enriquecedor.  Desde 2012, a Escola Estadual General Ibá Ilha Moreira é dirigida por uma educadora transexual, que tem a inclusão como bandeira.  A seguir, conheça a história de Adriana Souza.

  

Na porta da sua sala, a palavra diretora é rodeada por corações de diversas cores.  No seu rosto, a maquiagem se torna mais perceptível ao tirar os óculos – há uma marquinha onde os aros recostavam sobre a pele.  Os cabelos estão presos e, de tempos em tempos, são verificados com o devido cuidado.  As unhas são azuis como as paredes do prédio.

 

Formada em filosofia pela Unifra, de Santa Maria, Adriana Souza esmera-se para que os alunos da escola Estadual de Ensino Fundamental General Ibá Ilha Moreira, no bairro jardim Carvalho, em Porto Alegre, encontrem ali um ambiente acolhedor, que não exclua ninguém e nenhum assunto.

 

Filha mais velha de Miguel e Carmem, Adriana nasceu no dia 30 de março de 1982, em Itaqui, na fronteira com a Argentina.  Desde os quatro anos, ao ver sua tia caminhando, sonhava em ter o mesmo rebolado.  Sua avó, ao ver que ela tentava ter a mesma malemolência, a repreendia.  Adriana não deixou de imitar a tia, apenas passou a fazer isso escondido.

 

Na escola, veio o grande conflito.  Sempre se viu como menina, no entanto, ma hora de ir ao banheiro, deveria fazer isso com meninos.  Adriana era uma menina que havia nascido no corpo errado, e isso, mesmo sem que ela soubesse ainda, faria com que os seus sonhos se tornassem um pouco mais difícil de alcançar.

 

A família, conhecida na região, tinha um sítio no interior e uma casa na cidade.  No campo, brincava com os animais.  No meio urbano, recebia os amigos na varanda e lia para eles.  A brincadeira, com horário determinado, pois a mãe era cheia de regras e o pai não gostava muito de ver a criançada em volta, acabou se tornando ofício – o que não era o seu desejo inicial.  Adriana cursou a faculdade com o anseio de se tornar juíza da Vara de Infância e Juventude.  Durante dois dos três anos letivos, viveu em uma casa de estudantes e participava das missas todas as manhãs, às 6h.

 

A religiosidade sempre esteve presente em sua vida.  Da avó, herdou o catolicismo.  Da mãe, o espiritismo – que pratica ainda hoje, nas quartas à noite, quando faz aconselhamento.  A religião contribuiu para que sua família aceitasse a mudança de gênero.  A mãe entendeu que ela havia reencarnado no corpo errado.  O pai – com quem não fala muito sobre o assunto – ao descobrir, ficou 24 horas em silêncio, tomou uma boa dose de cachaça e aceitou.  Do seu único irmão, 11 anos mais novo, veio um dos momentos mais marcantes.  Ele recém havia entrado na escola e, após ser alvo de piadas por causa da irmã, perguntou por que ela tinha que ser diferente.

 

Adriana não sabia a resposta.

 

Do seu próprio dia a dia nos ensinos Fundamental e Médio, pouco lembra.  Adriana diz que matou certas lembranças, um mecanismo de defesa trabalhado com a ajuda de uma psicóloga.  Em sala de aula, era a primeira a chegar e a última a sair, sempre escolhendo um canto para sentar, para não ser percebida.  A época, já estava em fase de transição.  Entendeu aos 12 anos que poderia começar a ser externamente quem era por dentro tomando os anticoncepcionais da mãe, sem que ela soubesse.

 

A cirurgia redesignação do sexo foi feita durante a época da faculdade.  Se antes ela deveria usar roupas largas para esconder o corpo, agora poderia mostra-lo livremente.  A mãe a apoiou e disse que não basta ser mulher:  tem que se ver como mulher, se respeitar como mulher e se posicionar como mulher.

 

A autocobrança aparece no trabalho.  O sorriso fácil muitas vezes esconde uma exigência em ser a melhor no que faz.  Adriana pode não ter entrado na faculdade com o objetivo de lecionar, mas descobriu sua vocação no ensino.  Durante os três anos de estágio probatório, foi muito além das obrigações.  Sempre que precisavam de uma mão, ajudava.  Já fez merenda, varreu chão, auxiliou na secretaria, abriu portão.  Uma boa diretora deve conhecer o funcionamento da escola, acredita, e Adriana até já capinou pátio.  Sua disposição em melhorar o ambiente escolar fez com que osse escolhida vice-diretora em uma instituição de ensino e diretora em outras duas.

 

Até pouco tempo distante dos movimentos pelos direitos LGBT, mudou de postura ao assistir ao surgimento do que ela considera uma onda de conservadorismo.  Promoveu uma formação com seus professores sobre, entre outros assuntos, gênero e sexualidade, e espera que o assunto seja tratado não somente em sua escola.

 

Para ela, o número de transexuais que são obrigados a viver à margem da sociedade e acabam se prostituindo por falta de opção é alarmante.  E é por isso que está empenhada em mudar essa realidade através da informação.  Costuma citar uma propaganda que diz que o conhecimento liberta.  Ela quer dar a oportunidade para que outras meninas que apenas nasceram no corpo errado tenham a chance de se formar no Ensino Médio e no Superior.

 

Adriana luta pelo direito trans, mas com receio.  Também teme a reação quando sua história aparecer no jornal.  As pessoas, acredita, têm medo da opinião dos outros e, principalmente, daquilo que não conhecem ou não entendem.

 

Fonte:  ZeroHora/Caderno PrOA de 30 de agosto de 2015