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Entrevista com o Escritor Espanhol: Javier Cercas
Entrevista com o Escritor Espanhol: Javier Cercas

ENTREVISTA: JAVIER CERCAS

 

UM PASSADO A INTERPRETAR

 

Em Porto Alegre para o ciclo Fronteiras do Pensamento, o escritor espanhol Javier Cercas compara o mundo ocidental de hoje ao dos anos 1930 e defende a literatura que mostre como “a realidade é mais complexa do que parece”.

 

O espanhol Javier Cercas consolidou seu nome nas últimas décadas como o grande cronista histórico da sociedade espanhola do século 20. Cada livro seu parece encontrar um novo e original ponto para pensar sobre o que aconteceu na Espanha ao longo do difícil processo de reconstrução nacional após a ditadura de Francisco Franco (1938-1973). SOLDADOS DE SALAMINA, seu romance mais conhecido internacionalmente, é uma reflexão sobre a conciliação nacional ao narrar a história de um falangista fugitivo que escapa de um fuzilamento ao fim da Guerra Civil (iniciada em 1936) e, em sua tentativa de fuga, encontra um soldado republicano que pode ou não entregá-lo para uma nova execução. Ao mesmo tempo, a narração é feita pelo ponto de vista de um escritor chamado Javier Cercas, que busca elementos sobre a história para escrever um livro.

 

Publicado em 2001 e adaptado para o cinema por Fernando Trueba dois anos depois, o romance foi responsável por turbinar uma nova onda de reflexões e obras sobre o trauma da Guerra Civil na Espanha. É também uma amostra condensada de como Cercas escreve seus romances: reconstruindo episódios reais com rigor histórico e, ao mesmo tempo, embaralhando as noções entre fato e ficção.

- O que bons romances fazem é mostrar que a realidade é sempre mais complexa do que parece, e, desse modo, nos enriquecem a vida e a tornam mais digna de ser vivida.

 

Cercas, que esteve em Porto Alegre na última segunda-feira (22/10) para participar do ciclo Fronteiras do Pensamento, no qual debateu com o escritor chileno Alejandro Zambra, concedeu a seguinte entrevista, na qual discute os limites da ficção, suas obras, a crise catalã de um ano atrás e a ascensão recente, no mundo todo, de movimentos populistas de extrema-direita.

 

 

O senhor já definiu o romance como “o reino da ambiguidade”. Que espaço ainda há para o romance e seu caráter ambíguo no momento em que a polarização e o maniqueísmo parecem ser a tônica?

Receio que a polarização e o maniqueísmo tenham sido a tônica em muitos momentos da história – se não quase todos –, muito mais do que agora. Em meu livro EL PUNTO CIEGO, aponto que o romance, especialmente a partir do século 19 – que é quando se torna um grande gênero literário, comparável aos gêneros clássicos e ainda mais importante do que eles –, torna-se uma arma de destruição em massa da visão monolítica ou totalitária do mundo, precisamente porque carrega a ironia em seu coração. Em suma, o que bons romances fazem é mostrar que a realidade é sempre mais complexa do que parece, e, desse modo, nos enriquecem a vida e a tornam mais digna de ser vivida. Na verdade, o romance é um jogo, mas é um jogo em que se joga tudo.

 

 

Muitos atribuem ao seu romance SOLDADOS DE SALAMINA o início de uma nova onda de interesse da cultura espanhola pelo período da Guerra Civil. O senhor acha que o país fez nas últimas décadas o ajuste de contas com esse estágio de seu passado? 

Acho que o país tentou, mas ficou no meio do caminho. De qualquer forma, precisamos reconhecer duas coisas. Primeiro, que não é fácil acertar contas com uma guerra de 43 anos – porque a ditadura de Franco não era mais do que o prolongamento da guerra civil por outros meios. E, segundo, que todas as sociedades – e todos os indivíduos – têm problemas com os piores momentos de seu passado, e é por isso que tentam adoçá-lo, mascará-lo ou simplesmente escondê-lo, mentindo sobre ele. É um erro: a única maneira de assimilar o passado é entendê-lo. E entendê-lo não significa justificá-lo, pelo contrário: é munir-se de instrumentos para não cometer os mesmos erros novamente. Acrescento que temos de desconfiar daqueles que – politicamente, acima de tudo – dizem que é necessário esquecer esse passado e trabalhar para o presente a fim de preparar o futuro. Quem diz isso está tentando esconder alguma coisa, ou ignora que a única maneira de fazer algo útil com o futuro é ter o passado – especialmente o pior dele – sempre presente: quando se esquece o passado, já se está pronto para repeti-lo. É o que está acontecendo agora mesmo no Ocidente: estamos repetindo muitos erros que cometemos nos anos 1930.

 

 

Em ANATOMIA DE UM INSTANTE, o senhor faz a reconstrução de um momento-chave da sociedade espanhola: a fracassada tentativa de golpe para restaurar o franquismo, em 1981. Por que optou por uma abordagem histórica rigorosa para construir a ficção? 

ANATOMIA DE UM INSTANTE é um romance, mas é verdade que, como outros livros meus, parte da crônica, do ensaio,da história, da biografia, da autobiografia e outros gêneros. É assim que concebo o romance: um instrumento infinitamente maleável, onívoro e livre, que pode devorar todos os outros gêneros e se aproveitar deles. Mas, como outros romances meus, ele não tem ficção. Por quê? Porque cheguei à conclusão de que esse golpe de Estado, em 23 de fevereiro de 1981 – de certo modo, nosso equivalente do assassinato de Kennedy, na medida em que é o ponto exato para onde convergem todos os demônios da história do meu país –, era uma grande ficção coletiva. Não há um americano que não tenha uma teoria sobre o assassinato de Kennedy, assim como não há um espanhol que não tenha uma teoria sobre esse golpe, ou seja, o episódio foi enterrado em ficções, mentiras e teorias insensatas. Então, decidi que havia sentido em escrever uma ficção sobre outra ficção, que era redundante e literariamente irrelevante. Achei melhor descobrir a realidade oculta por trás de todas essas ficções e escrever uma história sem ficção, costurada ao real, ainda que, nem por isso, não seja romance.

 

 

Faz um ano que Jordi Cuixart convocou, na Catalunha, um referendo sobre a independência da região, seguindo da intervenção do governo espanhol e da prisão de Cuixart. Como o senhor vê os desdobramentos dessa crise?

O que aconteceu há um ano pode ser definido como uma tentativa de autogolpe civil pós-moderno de Estado, por meio da qual o governo catalão – que goza de enorme autonomia em relação ao governo espanhol – tentou separar a Catalunha do restante da Espanha contra a vontade de mais da metade dos catalães e sem respeitar as normas democráticas mais elementares. Quanto ao grande crescimento do separatismo catalão nos últimos anos, creio que no fim deve ser entendido como a manifestação de um movimento geral no Ocidente que podemos chamar de nacional-populismo e que, em cada país, se manifesta com diversas peculiaridades: nos EUA chama-se Trump; na Grã-Bretanha, Brexit; na Turquia, Erdogan; na França, Le Pen; na Itália, Salvini etc. Temo que no Brasil se chame Bolsonaro.

 

 

Como o senhor vê a ascensão internacional da extrema-direita 

É uma espécie de máscara pós-moderna e, no momento, mais leve daquilo que, nos anos 1930 e 1940 – após a crise de 1929 –, provocou o nacional-populismo que consolidou o totalitarismo no Ocidente. Hoje vivemos o pós-crise de 2008. Não preciso dizer que é perturbador. Quem não está preocupado com o futuro da democracia é porque não acredita em democracia ou não quer ver a realidade.

 

 

Em EL PUNTO CIEGO, seu livro de ensaios sobre o romance, o senhor afirma que todo romance é uma questão cuja resposta é o próprio romance, a história em si. Com quais perguntas o senhor está trabalhando agora? 

Após a conclusão de O MONARCA DAS SOMBRAS, meu romance mais recente, senti que havia chegado ao fim de uma estrada, e que, se continuasse ali, corria o risco de me repetir, que é a pior coisa que pode acontecer a um escritor. Então, passei a escrever um livro que quer ser ao mesmo tempo diferente do que escrevi até agora e muito pessoal. Quero dizer: acho que estou tentando ser outro enquanto ainda sou eu mesmo. Sei que é difícil, mas ninguém disse que escrever era fácil. Como escreveu Faulkner, o máximo a que podemos aspirar é uma derrota honrosa. É a isso que aspiro.

 

 

O senhor já teve romances adaptados para o cinema, alguns em filmes elogiados, como SOLDADOS DE SALAMINA. Como prefere ver o processo de transposição de uma linguagem artística para outra? Gosta de ser consultado ou não?

Quando alguém faz um filme a partir de um livro meu, meu trabalho é não trabalhar, isto é, dar ao diretor total liberdade para que ele possa fazer o que quiser. Acho que é a única maneira de o resultado ser bom. No final, vai ser bom ou não, mas temo que, se o escritor está acima do diretor, dizendo o que fazer e o que não fazer, controlando o filme, o resultado só poderá ser ruim, entre outras razões porque, sobretudo quando se trata de nossos romances, os escritores geralmente não entendem que a linguagem do cinema e a do romance são diferentes, e que, para sermos fiéis no cinema ao espírito de um romance, devemos trair seu sentido literal.

  

Fonte: Zero Hora/Caderno DOC/Carlos André Moreira (carlos.moreira@zerohora.com.br) em 28/10/2018