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Entrevista com o Escritor Turco Orhan Pamuk
Entrevista com o Escritor Turco Orhan Pamuk

Feminismo e caos urbano à moda turca, na ficção de Orhan Pamuk

O mais importante escritor da Turquia contemporânea fala do romance ‘Uma Sensação Estranha’

 

Nobel de Literatura de 2006, Orhan Pamuk, 64 anos, é hoje a maior voz literária da Turquia – e, sobretudo, de Istambul. A cidade natal de Pamuk dá título ao seu livro de memórias. E é também o universo vivo, caótico e cambiante em que circulam os personagens de Uma Sensação Estranha (tradução de Luciano Vieira Machado, Companhia das Letras, 592 páginas, 79,90 reais), romance lançado no Brasil, no qual se retratam décadas da vida de migrantes pobres da Anatólia que tentam construir uma nova vida na antiga capital otomana, que já foi Bizâncio e Constantinopla. Pamuk falou a VEJA, por telefone, sobre o novo livro, sobre suas conversas com vendedores ambulantes de Istambul, sobre a repressão às mulheres em seu país e sobre o plebiscito que, neste mês, pode transformar o regime parlamentarista turco em presidencialismo, ampliando os poderes do presidente Recep Erdogan.

 

 

Como o senhor compara as visões de Istambul oferecidas por Mevlut, o personagem principal de Uma Sensação Estranha, e pelo senhor mesmo no livro de memórias Istambul

Uma Sensação Estranha é a história de um vendedor de rua, que trabalha em Istambul entre o início dos anos 70 até os nossos dias. Mevlut, o protagonista, é um homem comum. Todos os demais personagens são de classe baixa, pessoas que vieram de aldeias rurais pobres da Anatólia para Istambul, onde constroem suas próprias casas. Em cultura, religião, geografia, história pessoal e, sobretudo, classe social, meus personagens são um tanto diferentes de mim. O que nos leva a uma questão fundamental da arte do romance: como representar pessoas das classes baixas, que serão muito diversas dos leitores do romance? Em geral, os romances sobre esses personagens tendem para o melodramático. Quis evitar isso. Mevlut, sim, é um homem comum, mas não é qualquer homem comum: é um indivíduo distinto. Pesquisei muito para esse livro, e me esforcei para fazer de Mevlut um ser humano dramático e completo. E, apesar de nossas diferenças de classe e cultura, compartilho da imaginação de meu personagem – uma imaginação romântica: quando anda à noite pelas ruas de Istambul, Mevlut observa as sombras, os cemitérios, os cachorros que o ameaçam. Assim como Flaubert disse “eu sou Madame Bovary”, eu posso dizer “eu sou Mevlut”.

 

 

Uma crítica do The Washington Post, citada na contracapa da edição brasileira, diz que em Uma Estranha Sensação o senhor fez por Istambul o que James Joyce fez por Dublin. Se isso é verdade, Mevlut seria o seu Leopold Bloom? 

Sim. Assim como Joyce usa Leopold Bloom para navegar por Dublin, eu tive a ajuda de Mevlut para navegar por Istambul dos anos 70 em diante. Mevlut foi muito gentil em me mostrar as novas vizinhanças, subúrbios e favelas da cidade. Ele tem, no entanto, demônios diferentes dos demônios de Bloom. 

 

 

Boza, a tradicional bebida de cereais fermentados que Mevlut vende pelas ruas, tem um papel proeminente no livro. O personagem diz até que há algo de sagrado nela. A bebida está ali para representar a tradição cultura? 

Sim. Uma das discussões que Mevlut tem com seus quase primos, que são quase fascistas, é esta: qual a natureza da identidade turca? Ela seria totalmente baseada na religião, como defendem os conservadores islâmicos, ou baseada na cultura, nos objetos, no modo como agimos, como pensamos, como comemos. Mevlut, sem ser um teórico, se posiciona pela cultura, e eu tenho a mesma ideia. Ele trata a cultura como algo sagrado, e eu sou próximo dele nesse ponto.  

 

 

Ainda vendem boza nas ruas na vizinhança em que o senhor mora? 

Sim. Uma Sensação Estranha foi publicado aqui em 2014, e, pouco tempo depois, na noite do Ano Novo de 2015, tivemos um vendedor de boza em nossa casa. Mas o auge da venda de boza nas ruas foi nos anos 70. Hoje, comercializam o produto engarrafado. Não é a mesma coisa: a apreciação do boza é também a apreciação da autenticidade, e a bebida engarrafada não é autêntica.

 

 

Em certo momento, o protagonista diz que não gosta da palavra “nostalgia”. Fica a impressão de que esse é também o sentimento do autor: a narrativa do romance revisita o passado, mas não é nostálgica. É isso mesmo? 

A nostalgia é um sentimento compreensível, mas também pode ser artificial e pretensiosa. Talvez eu seja levemente nostálgico nas minhas memórias ou neste romance, mas isso não é o centro do livro. Nostálgicos são na maioria das vezes gente triste, que acha que a infância foi a melhor parte das suas vidas. Não sou assim. Quando as classes mais altas de Istambul são nostálgicas, na maior parte das vezes expressam uma crítica aos pobres: são os imigrantes, os recém-chegados que, dizem eles, destroem a cidade ocupando prédios vazios ou construindo novas vizinhanças. O livro dá, é verdade, uma energia nostálgica para o modo como apreciávamos iogurte e arroz com frango dos vendedores de rua. Eu me importo com essas coisas. Dá para dizer que escrevi esse livro também para dar atenção a esses detalhes, mas não por nostalgia: minha motivação é histórica. Quis documentar esses elementos micro históricos que constituem a nossa vida.  Preservá-los, pois eles fazem parte da nossa história.  

 

  

O romance mostra uma impressionante intimidade com vários ofícios e profissões, do ambulante ao fiscal de companhia elétrica. Como foi a pesquisa para chegar a esse ponto? 

Cada livro tem seu próprio tipo de pesquisa. Quando escrevi Meu Nome É Vermelho, um romance histórico, li muitos livros de história e admirei pinturas persas e otomanas. Quando escrevi Neve, viajei para Kars, a cidade do nordeste da Turquia em que se passa a história. A pesquisa para Uma Sensação Estranha se deu, sobretudo, em entrevistas com vendedores de rua. Eu começava  comprando, por exemplo, um prato de arroz com galinha, que ainda é vendido nas ruas, e então falando sobre futebol, e daí pulava para outro tema, e em seguida perguntava como o vendedor cozinhava o arroz, e se o negócio ainda dava dinheiro, e ele ia me contando tudo. Às vezes, os vendedores suspeitavam de mim; em outras, eram tímidos. Mas, uma vez que a confiança se estabelecia entre nós, eles contavam todas suas histórias. E ficavam felizes de ver alguém interessado em tantos pequenos detalhes de suas vidas, e ainda por cima tomando notas. Foi um prazer. E essas entrevistas acabaram influindo na forma do romance.

 

 

Como? 

Comecei escrevendo em uma forma clássica, do século XIX, com um narrador em terceira pessoa contando toda a história, como nós encontramos em Tolstoi ou Stendhal. Mas, quando comecei a compilar e transcrever e reler as entrevistas, percebi que todo o drama e a cor desses depoimentos estava se perdendo sob essa narrativa antiquada em terceira pessoa. E comecei a interpolar vozes em primeira pessoa ao longo do romance.  

 

 

É curioso notar que, na descrição da vida urbana de Istambul, há elementos que os brasileiros que vivem em grandes cidades vão reconhecer: crescimento urbano desordenado, ocupação irregular em áreas sem infraestrutura, reformas que penalizam os mais pobres. 

Estive no Brasil duas vezes. Na segunda delas, no Rio de Janeiro, visitei favelas. Eu fico um tanto constrangido de admitir isso, mas fiz “turismo de favela”, que parece ter se tornado muito popular depois do filme Cidade de Deus. Também visitei, em Bombai, na Índia, aquela que deve ser a mais dramática periferia do mundo, com condições de vida muito piores do que aquelas que encontramos no Rio ou nos subúrbios pobres de Istambul. Já foi quase um inferno, mas hoje há organizações que dão mais amparo e pensam sobre o futuro do lugar. Em certo sentido, escrevi sobre as grandes cidades em geral.

 

 

O romance também faz um retrato vigoroso da situação da mulher na Turquia, não? 

Registrei aqui muitos detalhes sobre a opressão à mulher na Turquia, no mundo islâmico, na minha parte do mundo. Representei sobretudo as perversidades cotidianas feitas pelos homens. Não se trata de espancamento ou violência – que também aparece, em momentos ocasionais do livro –, mas de pequenas repressões. Por exemplo, as mulheres se esfalfam com todo o trabalho doméstico, mas nunca podem tocar no controle remoto da televisão. Em palestras para promover o livro em diferentes cidades turcas, eu dizia que este é meu primeiro livro feminista, e que de agora em diante vou escrever mais livros sobre a repressão às mulheres na Turquia. As mulheres aplaudiam. Claro, são leitoras, mulheres educadas, que aplaudiam com ironia ao ver um homem turco tentando ser feminista.

 

 

Neste mês, haverá um referendo na Turquia para decidir se o país deixará o parlamentarismo para se tornar presidencialista, o que resultaria em um aumento de poder para o presidente Recep Erdogan. Como o senhor votará? 

Vou votar “não”. Será a nossa última chance de continuar vivendo em uma democracia, de resistir às tendências autoritárias que vêm aparecendo nos últimos dois ou três anos. Estamos perdendo a democracia construída por gerações. Também estamos perdendo as boas relações com a Europa, e eu por muito tempo promovi a entrada da Turquia na União Europeia. Todos esses sonhos estão desaparecendo, e estamos indo em direção a um regime autocrático de um partido só. Alguns amigos meus estão na cadeia, muitos jornalistas estão na cadeia, e jornais, revistas e emissoras foram fechadas. O governo está usando o golpe militar frustrado de 2016 como desculpa para reprimir qualquer forma de crítica. Espero que o resultado seja “não”.

 

NOTA: 

Turquia votou neste domingo (abril/2017) um referendo que muda o regime político do país e instaura o presidencialismo. A decisão extingue o cargo de primeiro-ministro, hoje ocupado Binali Yildirim, e  fortalece os poderes do autoritário presidente Recep Erdogan.  Abril/2017 - Revista Veja