HOMENS E BICHOS
PERSONAGENS QUASE HUMANOS – PARTE 5
Há Dois trechos de “Vidas Secas” (1937) – admirável narrativa de Graciliano Ramos – que delimitam a figura da cadela Baleia:
“... e foram despertados por Baleia, que trazia nos dentes um preá. Levantaram-se todos gritando. O menino mais velho esfregou as pálpebras, afastando pedaços de sonho. Sinhá Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensanguentado lambia o sangue e tirava proveito do beijo”.
“A cachorra Baleia acompanhou-o naquela hora difícil. Repousava junto à trempe, cochilando no calor, à espera de um osso. Provavelmente não o receberia, mas acreditava nos ossos, e o torpor que a embalava era doce. Admitia a existência de um osso graúdo na panela, e ninguém lhe tirava esta certeza.”
No primeiro fragmento é a intervenção solidária do animal que atenua a exasperação da família sertaneja, e o beijo famélico de Sinhá Vitória, lambendo o sangue de seu focinho, revela o grau de miséria e a instintiva luta pela sobrevivência a que todos estão condenados naquele meio hostil.
No segundo trecho, percebe-se que Baleia pensa e sonha, e sua linguagem interior, seja do ponto de vista sintático ou seja semântico, não se difere da articulação mental de seus donos. Estes vivem, a exemplo do próprio bicho, em um universo de impotência verbal que espelha o primarismo e a pobreza de existências miúdas, permanentemente ameaçadas pela inclemência da natureza e da ordem social, e pelo caos de uma realidade em que muitas coisas não têm nome, nem lógica, nem sentido, tamanha a carência de linguagem que os arrasta ao silêncio e à solidão. Costumam expressar-se por resmungos, onomatopeias, muxoxos, rugidos, gritos, interjeições guturais. Com frequência, essas frágeis articulações são substituídas por gestos, olhares, ou mesmo um simples espichar de lábios. As diferenças entre a cachorra e os sertanejos (Fabiano, Sinhá Vitória, o menino mais velho e o menino mais novo) parecem dissolvidas na brutalidade de um cotidiano absurdo, convertido apenas em um presente de alienação, primitivismo e embotamento. Ou seja, homens e animais se igualam intelectualmente neste universo sem horizontes. A função nuclear de Baleia é deixar entrever a possibilidade de que – em meio à hostilidade da natureza, à ausência de educação formal e à opressão do sistema socioeconômico arcaico – algumas camadas da natureza humana da família sertaneja tenham sido suprimidas. Por isso, inúmeras vezes no transcurso da narrativa, Fabiano se observa como bicho: “Estava escondido no mato. Como tatu. Duro, lerdo, como tatu”.
Quem sabe, por isso, também a morte de Baleia seja a cena mais comovente do romance. Ao ser nivelada a Fabiano, sua mulher e seus filhos, a cachorra, paradoxalmente, se humaniza. Seus sentimentos e impressões, breves, mas cheios de calor para os donos e impregnados de singelo prazer de existir, de servir, de se ver reconhecida e acariciada, vão criando no leitor uma empatia única. Quando Fabiano decide matá-la, pois está doente e frágil, o nosso coração se aperta. Não há outra cena tão emocionante na obra de Graciliano, cujas ficções se caracterizam pela aspereza e pela fuga de tudo aquilo que possa representar concessão emotiva. O choro das crianças no casebre, o tiro que o vaqueiro desfere, e a exposição da interioridade da cadela, em que registros da dor mesclam-se ao esforço de abrandá-la e ao espanto pelo próprio sofrimento e pelo significado da ação de Fabiano, as reles lembranças que pouco a pouco se confundem em seu cérebro rústico, o chocalho das cabras, o cheiro bom dos preás, imagens fugidias dos meninos que deviam estar dormindo, a percepção de que uma noite gelada, nevoenta e incompreensível cobre-lhe o corpo e os olhos e, por fim, o desejo de dormir e de acordar logo e espojar-se com as crianças num chiqueiro enorme e contemplar um mundo encantado, cheio de “preás, gordos, enormes”; tudo isso, essas percepções estilhaçadas, de absoluta simplicidade, parecem condensar um insuportável afeto, de teor humano, que Baleia experimenta por tudo aquilo que a cerca. Não há quem termine de ler a cena sem ficar profundamente tocado.
Pequena obra-prima
Na década de 1940, Rubem Braga designou “Vidas Secas” como romance desmontável, pois os 13 capítulos que o compõem podem ser lidos isoladamente, constituindo uma sucessão de flagrantes, até certo ponto autônomos, do dia a dia da gente do sertão nordestino. Curiosamente, este relato nasceu de pequeno conto (Baleia), conforme afirmativa do próprio Graciliano Ramos:
“No começo de 1937, utilizei num conto a lembrança de certo cachorro sacrificado. (...) Transformei meu avô no vaqueiro Fabiano; minha avó tomou a figura de Sinhá Vitória; meus tios pequenos reduziram-se a dois meninos. Publicada a história, não comprei o jornal e fiquei dois dias em casa, esperando que meus amigos esquecessem Baleia. O conto me pareceu infame – e surpreendeu-me falarem dele. (...) Habituei-me tanto a eles (os protagonistas) que resolvi aproveitá-los de novo. Escrevi ‘Sinhá Vitória’. Depois apareceu ‘Cadeia”. Aí me veio a ideia de juntar as cinco personagens numa novela miúda – um casal, duas crianças e uma cachorra, todos brutos”.
Assim, a montagem do relato acabou sendo feita pela justaposição de capítulos, o que lhe confere uma estrutura relativamente aberta e descontínua. Ao contrário do romance tradicional, inexiste uma evolução dramática na intriga e nos caracteres dos indivíduos. Os capítulos soltos, temporalmente imprecisos, reforçam a impressão de almas humanas sem passado e sem futuro, cristalizadas no repetitivo esforço de sobrevivência e submersas em um mundo imóvel e desolador. No entanto, tal aparência de texto descosido, somada ao implacável retrato de seres despojados de consciência, incapazes de entender a realidade em sua plenitude, não impedem a percepção, por parte do leitor, de que há, na narrativa, uma magnifica unidade estrutural. Esta deriva da recorrência de certos motivos que aparecem em quase todos os capítulos, cimentando-os estética e ideologicamente: a força destruidora da natureza, o peso do jugo social, a carência da linguagem, os sonhos rústicos dos personagens e, sobretudo, o jogo dialético entre o rebaixamento (animalização) e o alçar-se (humanização) dos indivíduos.
Daí a importância decisiva de Baleia. Sua morte, apesar da notável ressonância poética que emite, antecipa, de certa forma, o sentido mais profundo do romance, cujo esclarecimento dá-se apenas nas frases derradeiras do último capítulo, quando a tensão entre a condição humana e a não humana é resolvida. Os animais (exceto as aves de arribação) não resistem às agruras do ambiente: o papagaio da família, bois, cabras e Baleia, todos estão mortos, todos ficaram para trás, desaparecendo num universo aniquilador. Somente as criaturas humanas resistem ao horror e encontram em si mesmas a disposição voluntária para ultrapassar o destino e mudar de vida, sobrepujando as mais terríveis circunstâncias. Fabiano e o grupo familiar seguem em direção à cidade. Não sabemos o que ocorrerá com eles, se os meninos terão escolas, como sonha o pai, se triunfarão na nova realidade urbana, que se constituía no país, ou simplesmente irão submergir nas primeiras favelas brasileiras. Sabemos apenas que eles são homens. Homens e não bichos:
“E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos.”
Fonte: Correio do Povo/Sergius Gonzaga(Professor de Literatura Brasileira/UFRGS e escritor) em 12/09/2015