FORMAR LEITORES? PARA QUÊ?
Um clássico é relançado com notas de rodapé que explicam inclusive termos e temas básicos da cultura ocidental. Professor propõe uma reflexão a partir da necessidade de explicar o que, presumidamente, já seria sabido
Estou relendo o clássico MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS, de Machado de Assis, em exemplar presenteado por um amigo. É uma edição de 2019 da Antofágica, em capa dura, projeto gráfico bem cuidado, com ilustrações de Candido Portinari (1903-1962) feitas para uma reedição de 1944.
É comum, em livro técnico-científico, encontrarmos um glossário, normalmente ao final da obra - lista de vocábulos de significado mais específico dentro da área de conhecimento do livro e que ali estão explicados, qual num dicionário. Pois, surpreendentemente, na prazerosa releitura da obra de Machado de Assis encontrei algo editorialmente pouco usual em livro de prosa ficcional: um quase glossário, agregado nessa edição, porém com cada registro feito em nota de rodapé, esclarecendo os leitores sobre pensadores, dramaturgos, personagens de obras clássicas, da mitologia, da Bíblia, estrangeirismos, eventos. Assim, se num determinado trecho daquela narrativa machadiana aparece o antropônimo Aristóteles, em nota de rodapé é explicado ao leitor que se trata de um filósofo grego dos anos 300 a.C.; se está registrado em inglês uma expressão sacada por Machado do HAMLET, é traduzida sendo também dito quem foi Shakespeare; se há referência a OS LUSÍADAS, o poema épico é brevemente decifrado no rodapé. Enfim, são notas elucidativas destinadas a uma categoria de leitor que nunca ouviu falar de Aristóteles ou Shakespeare, tampouco em OS LUSÍADAS. Já se vê, tem-se aqui um verdadeiro enigma a ser decifrado: por que cargas d'água alguém que desconheça tais elementos comuns da cultura ocidental resolveria ler MEMÓRIAS PÓRTUMAS DE BRÁS CUBAS? Mais: a quem se dirige essa edição requintada? A bibliófilos? A intelectuais? Se assim for, descaberiam as notas de rodapé esclarecedoras.
Todavia, essas notas de rodapé não comportam apenas aquela modalidade de esclarecimento. Há outro tipo de registro: os que oferecem o significado de algumas palavras aplicadas por Machado de Assis, que caíram em desuso com os anos, e que as novas gerações desconhecem; mas, aí há um busílis: outras poucas, não em desuso - como introito, escusado, vetustez -, aparecem trocadas em miúdos, numa suposição editorial, não descabida, do seu desconhecimento pelo leitor.
Se o editor desse livro entendeu como necessário registrar em notas de rodapé o significado de certas expressões, deverá ter sido porque suspeitou que o livro poderia ser compulsado por criaturas com déficit vocabular significativo, déficit esse proporcionado, com raras exceções, pela lamentável formação oferecida aos alunos, nas quatro últimas décadas em salas de aulas escolares, bem como, mais recentemente, pela atrofia da linguagem da multitudinária legião de jovens usuários, em tempo integral, das redes sociais, em que a comunicação acontece quase que por códigos ou função fática.
Dos tempos em que ministrei aulas em colégios, para alunos pré-vestibulandos, não consigo esquecer de certo objetivo descomunal de meus colegas docentes de Literatura. Se os professores de Educação Física não pretendiam, com suas aulas, forjar atletas os sequer futuros praticantes regulares dalgum esporte, os de Biologia, Física e Química jamais pretenderam formar cientistas, os de Matemática, matemáticos, já os de Literatura, sempre com estrondoso insucesso, queriam porque queriam que seus alunos se tornassem "leitores", mediante o exercício caseiro prescrito de leituras de clássicos literários. Eram raros os alunos que não se mostravam absolutamente refratários a tais leituras. Acredito que, como ainda hoje, essa compostura escapatória generalizada de ler os clássicos no colégio se deva ao simples fato de a atividade de ler livros não constituir uma vontade natural, perseguida por todo o comum das pessoas, conforme assinalou o pensador G. Steiner (1929-2020); notadamente, por requerer disciplina, concentração. Não será inconveniente dizer que leitor de literatura ficcional importante é aquele indivíduo que segura o livro aberto à sua frente e mantém, ao alcance da mão, um lápis, para sublinhar ou comentar marginalmente, e um dicionário, para consultar expressões do texto que lhe são desconhecidas. Enfim, alguém que lê com deleite.
À escola compete formar pessoas educadas para o convívio com os demais, para a participação solidária; gente que com os anos escolares introjetou uma capacidade de analisar, de discernir e uma disposição de ouvir o outro e de, com pluralismo, dialogar; gente que saiba escrever corretamente e com coerência, sendo igualmente capaz de ler criticamente e interpretar o lido; enfim, gente apta para o viver e suas vicissitudes. Para atingir tal condição pessoal, parece-me um erro primário acreditar que, como condição sine qua non, devem-se ler clássicos literários no colégio. Mas, os erros mais óbvios, ensinou-nos o filósofo social R. Scruton (1944-2020), são os de mais difícil percepção e correção.
Fonte: Zero Hora/Caderno DOC/Carlos Alberto Gianotti/Docente de Física e editor em 17/01/2021