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Leonardo Brasiliense: Conto Cafezinho e Castigo
Leonardo Brasiliense: Conto Cafezinho e Castigo

CAFEZINHO E CASTIGO

 

O CS publica conto inédito de Leonardo Brasiliense, do livro EU VOU MATAR MAXIMILLIAN SHELDON

 

Leonardo Brasiliense lança o livro de contos, no dia 28 de maio, em Porto Alegre.

 

Cavaquinho acorda na segunda-feira e espanca a própria mãe. Não é a primeira vez, mas nunca chegou tão longe. Sai de casa pensando que ela morreu.

 

Sonhou com um cavalo branco perdido nas ruas de uma cidade velha, ruas estreitas, sem calçada. Todas as casas tinham as portas fechadas e vez por outra o cavalo cabeceava alguma. O cavalo não era todo branco, tinha uma orelha preta.

 

Cavaquinho não mora na cidade natal há dez anos. Saiu para ser ajudante de caminhoneiro. Mas vem sempre que pode, ao menos uma vez ao ano, geralmente no Dia das Mães.

 

São oito e meia da manhã e Cavaquinho anda a esmo pela cidade, quase apenas ele nas ruas. O outono vai frio. Ele tinha um amigo de infância que virou funcionário dos Correios, o Benjamin. Resolve lhe fazer uma visita.

 

O prédio dos Correios é uma casa antiga, alugada, bem no centro da pequena cidade. Corrigindo: é meia casa, a outra metade é a sede de uma empresa de xerox e encadernações.

 

Dez anos sem ver o amigo, sem telefonar para o amigo, nem sequer perguntar a alguém por ele. Cavaquinho tem pruridos de entrar na repartição do outro e filar um café porque, afinal, sua mãe não teve tempo de preparar nenhum esta manhã.

 

Porém, como se diz, amizade verdadeira é para sempre, para os bons e os maus momentos, seja o que for. Ele entra. Depara-se com um grande balcão de madeira e nenhum Benjamin.

 

Há somente um funcionário, de camisa amarela e casaco azul – já se disse que este outono vai frio. O funcionário não tem cara de Benjamin, mas é simpático. Cumprimenta Cavaquinho sorrindo e naturalmente lhe pergunta o que deseja.

 

Atrás do grande balcão, a parede sustenta quatro relógios, de tamanhos diferentes. Todos mostram exatamente a mesma hora, os ponteiros dos segundos percorrem os mesmos lugares.

 

Isso deu trabalho”, Cavaquinho pensa. E esquece o que o funcionário perguntou. Não há mais ninguém na agência, só eles dois. “Esse maluco não pode ter feito isso sozinho”, Cavaquinho continua pensando e, como demora, o outro repete:

- O que você deseja?

- Ah…

- No que posso ajudar?

- Não sei… O Benjamin está?

- Quem é Benjamin?

- O Benjamin, ele trabalha aqui.

- Desculpa, aqui só trabalho eu.

- Então ele trabalhava…

- Sim, pode ser. Antes de mim tinha um cara. Ele foi embora sem avisar ninguém.

- O Benjamin fez isso? Ele era um cara bom.

- Não sei se era esse Benjamin. Eu não sei o nome do cara. Me ofereceram transferência pra cá e eu aceitei.


Cavaquinho fica ensimesmado, refletindo sobre as razões para o seu amigo Benjamin sumir. Não consegue pensar em nada que justifique. Lembra-se dos relógios.

 

Entra uma senhora na agência, uma velhinha de cabelo roxo. Ela traz um carrinho de feira vazio, decerto estava indo ao mercado. O funcionário naturalmente lhe pergunta o que deseja, e ela tira um envelope dos pequenos da bolsa:

- Carta simples.

 

Enquanto a velha é atendida, cavaquinho presta atenção no funcionário: não se parece nada com Benjamin, é quase o oposto: alto, gordo, meio loiro e tem barba.

 

- Faz muito tempo que você não fala com seu amigo? – o funcionário lhe pergunta quando a velhinha vai embora.

Cavaquinho hesita:

- Dez anos. Como você sabe que ele era meu amigo?

O funcionário ri aquele tipo de riso de orgulho de quem sabe das coisas:

- Eu estou aqui faz uns seis anos. Se alguém entra num lugar perguntando por um fulano que talvez tenha estado ali há mais de seis anos, deve ser amigo.

Esse gordo é inteligente”, Cavaquinho conclui, e começa a se sentir à vontade:

- O Benjamin e eu, a gente era chapa.

- Viu?

 

 

Os dois riem juntos, o que os coloca numa posição de nítida cumplicidade. De repente um rangido, não no assoalho, que nem tem como ranger porque é de cerâmica, mas no forro do teto, que é de madeira. O funcionário se fecha.

- Que foi isso? - Cavaquinho pergunta.

- Não foi nada – o outro responde, começando a remexer e arrumar os fôlderes de cima do balcão.

 

Cavaquinho olha desconfiado para o forro do teto e se lembra de que não tomou nenhum café até àquela hora. Precisa puxar assunto e não pode ser o forro. Sim, os relógios:

- Me tira uma dúvida aqui…

O funcionário para de mexer nos papéis e o encara. Ainda não recuperou o semblante alegre e cordial.

Cavaquinho continua:

- Esses relógios, me diz, você que arrumou todos eles assim?

- Como assim?

- Deixa pra lá.

Cavaquinho começa a tremer pela falta de café. Sente um embrulho no estômago e parece que sua cabeça está cheia de vento. O outro é funcionário público, “mais cedo ou mais tarde vai tomar um cafezinho, questão de tempo”, ele pensa.

- Eu tinha o costume de visitar o Benjamin aqui – ele mente.

- O Benja era bom de papo… - força uma risada – Uma figura, o meu amigo Benja…

O funcionário chega bem na frente de Cavaquinho:

- Você nunca sentiu que, às vezes, e sem nada a ver com a sua vontade, como dizer… coisas acontecem?

- Claro que já! - cavaquinho responde de pronto.

O funcionário se espanta. Recua. Não esperava uma resposta positiva. Ele esperava mesmo era que Cavaquinho pedisse mais explicações para a pergunta.

- É?

- É.

 

Os relógios todos marcam nove horas. Em silêncio.

- Que bom – O funcionário diz ainda sem entender como Cavaquinho possa entendê-lo.

- Mas me dá um exemplo – cavaquinho pede.

 

O funcionário aponta para cima, para o forro.

Cavaquinho coça o queixo e arrisca:

- Você está falando de religião?

 

O funcionário espicha o pescoço na direção da porta, olha para os lados e se inclina para Cavaquinho:

- Não, do barulho. Eu não sei explicar, mas eu mexo com as coisas. Aquele barulho…

- Aquele rangido nas tábuas do forro, você está querendo me dizer que aquilo era coisa tua?

- Exatamente.

 

Cavaquinho dá um tapa no balcão de madeira:

- Isso é demais – olha o funcionário bem nos olhos, ergue o indicador da mão direita e diz:

- Só com um cafezinho para eu entender.

 

O outro demora um instante até reagir:

- Sim, sim, um café. Aceita um café?

 

Cavaquinho assente com a cabeça. Segura um sorriso para não se entregar. Vê o funcionário sumir na peça dos fundos. Deve ser uma cozinha. Ouve uma torneira se abrindo. Som de recipiente sendo preenchido. Daqui a pouco virá o cheiro, se Deus quiser.

 

Novo rangido no forro.

Ele olha para cima. “Madeira trabalha”, pensa, “e esse doido acha que tem superpoderes”.

- Uma vez eu fechei uma janela da área de serviço da minha casa – o funcionário grita lá de dentro.

- Eu pensei em fechar e, quando cheguei perto, ela já tinha se fechado… sozinha, entende?

- Aham – Cavaquinho responde no automático, porque só pensa no café.

- Outra vez foi a primeira corda do violão. A mais grave, saca? Eu estava assistindo a um filem no escuro, o violão ali escorado na parede, o filme foi ficando tenso, tenso, e…

 

Antes que Cavaquinho sinta o cheiro do café, o teto despenca na sua cabeça.

Vem o forro, ouve-se um estrondo, vem o madeirame da estrutura do telhado, vêm telhas e pó, muito pó, não se enxerga mais nada.

 

A Velhinha do cabelo roxo, voltando do mercado com o carrinho cheio de hortaliças, para na frente da agência dos Correios. Ela fica sem reação diante da poeira e do barulho todo. Jura ter sonhado essa noite com uma enchente e muita gente morta, agora acha que as coisas têm alguma relação. Pela primeira vez na vida, às vésperas de fazer oitenta e três anos, acha que nada neste mundo é coincidência

 

Fonte: Correio do Povo/CS/Leonardo Brasiliense/Escritor. Autor de obras como TRÊS DÚVIDAS e ROUPAS SUJAS, em 27/04/2019