OSWALD DE ANDRADE E A (RE)EXISTÊNCIA DA ALEGRIA DESOBEDIENTE
70 ANOS DO MANIFESTO ANTROPÓFAGO
O nosso maior fracasso civilizacional e infortúnio foram os portugueses terem aportado no litoral de Pindorama em um dia de chuva e, com isso, terem vestido os índios. Se naquele 22 de abril de 1500 o Sol brilhasse nas paradisíacas praias de Porto Seguro, na Bahia de todos os Santos, os indígenas teriam despido os desbravadores e o Brasil seria outro. A hipótese, que é antes um chiste que um relato histórico, é de Oswald de Andrade em seu “Manifesto Antropófago”, completados 90 anos no mês de maio.
O texto é um verdadeiro marco na história da cultura brasileira, Ele foi escrito dez anos após Macunaíma, de Mário de Andrade (que, apesar do sobrenome, não era seu parente), seis anos depois da Semana de Arte Moderna e quatro anos depois do Manifesto da Poesia Pau-Brasil. Oswald arrebenta as portas do pensamento colonialista e faz, talvez pela primeira vez, memória positiva à enorme contribuição dos povos indígenas à nossa cultura. Compra briga com o crítico Graça Aranha, faz piada e provoca os adoradores de José de Alencar e Carlos Gomes, com suas odes, literárias e musicais, ao bom selvagem.
Oswald chamou a atenção para a constante antropofágica que nos caracteriza sem nos essencializar. No campo da Antropologia, viveiros de Castro, em “A Inconstância da Alma Selvagem”, de certa maneira retoma esta mesma ideia em seus próprios termos, que dão nome a uma de suas mais importantes obras. E é justamente essa inconstância de nossas almas que funde o catolicismo, as místicas indígenas e seus rituais sagrados com as religiões de matriz africana. Inventamos a umbanda, o candomblé e o Menino Deus nascido no terreiro do recôncavo baiano.
Mesmo tendo criticado abertamente o paradigma do Totem e Tabu, de Freud, defendendo a inversão e transformação do Tabu em Totem, o que se fez o Brasil, mesmo após o Manifesto, foi insistir na ideia retrógrada e colonial de se ajoelhar diante do altar da cultura do Norte global. Caetano Veloso, em “Verdade Tropical”, livro publicado inicialmente na década de 1990, lembra que a antropofagia se constitui como linha de fuga, não como uma constante na história do Brasil. Nesse sentido, a Tropicália, movimento cultural-musical-estético ocorrido 50 anos após o Manifesto, é um exemplo dos bons e raros frutos do pensamento antropófago.
A antropofagia, contudo, não se constitui somente como uma força criativa e de existência como sublimação, possui também sua face reacionária. A esta última Oswald, já quase no fim de seu manifesto, deu o nome de “baixa antropofagia” (na década de 1920 era muito comum a divisão dos produtos artísticos entre alta e baixa cultura, de onde deve ter vindo a inspiração da provocação). Mas se presumível “alta antropofagia” só existiu como linha de fuga em nossa história cultural, a “baixa antropofagia” parece ter se transformado na regra, caracterizada pela exploração, por uma vida mediada pelo pecado e pelo desejo constate de disciplinarização.
Oswald dizia que o Brasil havia sido “apenas a profecia e o horizonte utópico do ócio. Mas o foi esplendidamente”. A dobra do mundo em sua versão digital nos coloca diante da Revolução 4.0 de uma realidade intensiva em automação industrial. Em poucas décadas estaremos diante da eliminação de boa parte do trabalho humano que conhecemos hoje. Sejamos conscientes, mas não ingênuos. Diante desse novo mundo, ficaremos apenas indignados pela redução dos direitos trabalhistas ou lutaremos pela utopia da renda básica universal?
Os tantos movimentos que irromperam no século XXI, tais como Occupy Wall Street (EUA), Primavera Árabe (Tunísia, Egito, Líbia e Síria, só para ficar nos de maior monta), Indignados (Espanha), Nuit Debout (França)< Passe Livre e Ocupações Secundaristas (Brasil), e inúmeros outros, carregam em si o desejo utópico de transformação e insurgência cotra as injustiças das sociedades contemporâneas. Isso não significa que os métodos sejam necessariamente nobres. No fundo é a eterna luta pelo direito ao ócio, que continua sendo privilégio dos setores mais abastados da população mundial, o que representa uma ínfima fatia dos habitantes terrestres, algo da ordem do 1%. Enquanto isso uma multidão de indigentes vaga faminta e desempregada (o ócio como castigo) nos mais variados quadrantes.
Depois de Montaigne, ainda no século XVI, que desafiou a superioridade do pensamento europeu em seu ensaio “Des Caniballes”, Oswald é um dos primeiros (e raros) pensadores a desafiar o projeto civilizacional dos colonizadores. Em tom sempre provocativo, sem papas na língua, defendia que “A alegria é a prova dos nove” e que a produção de paixões alegres era nossa prova real de (re)existência. Profecia ou não, o fato é que o desfile da Paraíso do Tuiuti, no Carnaval carioca de 2018, é o exemplo vivo de que, apesar do cenário político atual, não é a melancolia que produzirá saídas para nossos dilemas, mas a alegria viva de nossa resistência.
Voltando à crítica original de Oswald contra uma ideia rasa e linear da modernidade que a reconhece somente como expressão positiva, percebemos agora que a Renascença nos retirou do mundo natural para nos colocar no mundo científico, cujo colapso (ambiental, econômico e social) somos testemunhas. Há que se construir um caminho de retorno, não ao passado, mas ao homem natural não contaminado pelos vícios da sociedade patriarcal. É n deserto da imaginação política que se arrebanham os mais insólitos sentimentos e desejos, capazes de dar voz e legitimidade a figuras como Hitler, Mussolini, Stálin, sem contar os totalitários verde-oliva que se arvoram aos palcos midiáticos dos dias correntes.
Por fim, a crítica de Oswald nunca negou a sofisticação da sapiência europeia, mas sempre fez questão de engoli-la e regurgitá-la. Um gesto crítico de respeito sem adoração cega. É preciso jamais esquecer Cunhabembe que ao ser questionado por Hans Staden por que comia a perna assada de um homem respondeu: ‘Jaúara ichê’ (sou um jaguar). Ainda que o pensamento antropófago defendido por Oswald continue sendo uma miragem no horizonte da razão ocidental, pelo menos em termos filosóficos, há que desanuviar as vistas. Há que se manter a inconstância da alma selvagem como devir desobediente.
Fonte: Jornal Correio do Povo/CS/Ricardo Machado (Jornalista com especialização em Filosofia e Mestrado em Comunicação pela Unisinos. Atualmente é aluno do doutorado em Comunicação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGS) em 02/06/2018.