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Aldyr García Schlee: Obra Literária de Rara Força
Aldyr García Schlee: Obra Literária de Rara Força

A PERMANÊNCIA DE SCHLEE

 

Criador de personagens marginais, distantes dos estereótipos de valentia associados à fronteira onde passou a vida, Aldyr García Schlee legou uma obra literária de rara força. O escritor nascido em Jaguarão morreu no último dia 15, aos 83 anos.

 

NACIONALIDADE DIFUSA

 

Deu no New York Times. “Aldyr Schlee, designer da famosa camisa da Seleção Brasileira, morre aos 83 anos”, mancheteava a seção de obituários do mais prestigiado jornal do mundo no domingo passado. Há 65 anos, havia sido diferente. Quando noticiou o vencedor do concurso que recriou o uniforme após o fiasco trajado de azul e branco na Copa de 50, o diário carioca Correio da Manhã de 15 de dezembro de 1953 limitou-se a reproduzir o figurino verde e amarelo desenhado por Schlee, sem menção ao autor daquele que viria a se tornar o mais icônico manto do futebol.

- Peguei o jornal e vi o meu desenho. O pior é que não dizia o nome do vencedor, a notícia só trazia a ilustração. Ganhei e só eu fiquei sabendo – contou-me Schlee por ocasião dos 50 anos do prêmio, em 2003.

 

Alheio ao anonimato inicial, o feito o acompanhou a vida toda, como uma tatuagem em sua biografia. Desenhista, escritor, ensaísta, jornalista, tradutor, bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, doutor em Ciências Humanas, livre-docente de Direito Internacional, fundador de jornal e de faculdade, caricaturista, vencedor do Prêmio Esso de Jornalismo, de duas Bienais de Literatura e cinco prêmios Açorianos, agitador político, torcedor do Brasil de Pelotas, do Cruzeirinho de Porto Alegre e da seleção uruguaia, jogador de futebol de botão – não adiantava a atividade, era sempre lembrado pela famigerada camisa canarinho.

- Quando recebeu uma das bienais, assim que falaram da camiseta ele foi aplaudidíssimo por gente como Mário Quintana e Jorge Amado – lembrava, aos risos, a mulher Marlene, companheira de uma vida toda.

 

Militante de esquerda da adolescência à velhice e preso político durante a ditadura militar, Schlee não suportava mais ser associado ao uniforme. Na última Copa do Mundo, recusou-se a dar entrevistas, afastando do sítio no Capão do Leão, nas cercanias de Pelotas, o périplo de jornalistas. Incomodava-o sobretudo o uso da camisa nas manifestações de direita Brasil afora, seja em favor do impeachment da então presidente Dilma Rousseff ou em prol de Jair Bolsonaro. Ao incauto que ousou lhe perguntar se teria alguma sugestão para mudar a vestimenta, não titubeou:

- Marrom. Acho que tem de ser camisa marrom, calção marrom e meia marrom. O país tá uma merda mesmo.

 

Desencantado com a política, Schlee mergulhou nas letras. Desde a morte de Marlene, em janeiro de 2017, vítima de câncer no pulmão, intensificou o ritmo frenético da escrita. Desconfiava que não tinha muito tempo. À época, já enfrentava um melanoma que insistia em lhe corroer a pele. Em seis anos, foram 14 cirurgias, a primeira para a retirada de um sinal na parte interna da coxa esquerda. A última, debaixo do braço esquerdo. As limitações não tolhiam a criatividade. Lançou em setembro O OUTRO LADO, uma “noveleta pueblera”, como definiu. Trabalhava em BORGES – CONTOS COM ESPELHO, antologia do escritor argentino acompanhada de textos próprios refletindo o material original. E deixou pronto o DICIONÁRIO DA CULTURA PAMPEANA SUL-RIO-GRANDENSE, dois volumes e mais de mil páginas que ambicionam reunir todos os termos referenciais da literatura platina.

- O difícil era dar o trabalho por concluído. Cada vez que lia um livro novo, a obra ganhava mais verbetes – diz o amigo Luiz Carlos Vaz.

 

Em 26 de setembro, viveu em Jaguarão uma noite idílica. Rodeado de amigos e jovens leitores, na cidade natal que batizou rua com o nome de um de seus livros (UMA TERRA SÓ), palestrou sobre literatura fronteiriça, lançou a última obra e ficou quatro horas dando autógrafos. Saiu exausto, mas pleno de satisfação. Nesses eventos, apenas uma coisa o irritava: que errassem a pronúncia do sobrenome (diz-se Schilê), algo costumeiro a ponto de Marlene sempre alertar os convivas para que não o deixassem “fazer fiasco”. Certa feita, na mesma Jaguarão, mestre-de-cerimônia o chamou de Schilling.

- Não sou eu – reagiu.

 

Em 3 de novembro, Schlee lançou O OUTRO LADO no Margs e, no retorno a Pelotas, foi direto para o hospital, já convalescendo de um câncer que chegava ao fígado. Na sala de espera da UTI da Beneficência Portuguesa, Vaz e os filhos do escritor aguardavam notícias quando o circuito interno de TV transmitiu o boletim atualizando o estado de saúde dos pacientes. Para surpresa geral, o nome apareceu como Aldyr García Schller, errando desta vez a grafia. Um dos filhos brincou:

- Se tem transmissão lá pra dentro, ele deve estar enfartando.

 

Schlee morreu às 20h30min de 15 de novembro, feriado da Proclamação da República. Nascido no fim do Brasil, era um homem de duas pátrias e, ao mesmo tempo, nenhuma. Sua obra dialoga com as milongas de Vitor Ramil, habita os campos neutrais da literatura meridional e privilegia o cotidiano marginal de chibeiros desvalidos em detrimento da epopeia mítica do centauro dos pampas. Essa nacionalidade difusa, de quem preferia Montevidéu a Porto Alegre, a celeste olímpica à Seleção Brasileira, detestava o termo “gaúcho” e tinha livros publicados primeiro em espanhol e depois vertidos para o português, o acompanhou do berço ao túmulo. Quando o esquife desceu à cova no cemitério Memorial Parque, estava envolto em uma bandeira do Uruguai.

 

Por Fábio Schaffner (fabio.schaffner@zerohora.com.br)

 

A SOLIDÃO

Aldyr Garcia Schlee habita no mesmo cais em que estão Guimarães Rosa, Erico Verissimo, Jorge Amado, Cecília Meireles, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade e alguns outros. Outros, que não são muito numerosos. É uma experiência maravilhosa entrar no seu universo literário original, o das gentes simples e de comportamento espontâneo e veraz, transversal e dinâmico da linha divisória, ora de um lado, ora no outro lado, ora transgressor, ora desbordante em hábitos e palavras peculiares, comuns aos dois povos. Seus livros são imagéticos, cinematografia eloquente e escorreita, a monumental dos grandes descortinos do Pampa, campos, horizontes, nuvens epifânicas, trovejantes e o infinito; e o das cenas fechadas das intimidades mais secretas e silenciosas, que vão nos conduzindo aos planos e aos contraplanos de sua imaginação, roteiro de inúmeros filmes inventados de forma convincente por ele e descritos em papel.

 

O escritor dialoga e escuta suas personagens. E conta-nos com voz baixa as histórias que delas aprende, revelando-nos mundos que desconhecemos. “Meus personagens são os rejeitados”, diz o autor – sabendo que vai nos contar histórias, dramas, alegrias e emoções significativas e até comoventes de gente que, à maioria de leitores, está sempre invisível, aparentemente fora de sintonia com um mundo real, e que, na verdade, é o mundo paralelo e tangível que conduz os destinos da grande maioria das pessoas, resultando daí a magia de uma empatia e de identificações muito intensas.

 

Schlee deixou-nos no momento em que mais produzia, com entusiasmo juvenil, cheio de projetos no universo literário e artístico. Estava exultante com a perspectiva de ir em breve a Montevidéu para o lançamento de sua tradução ao espanhol do livro LOS LIMITES DEL IMPOSIBLE – CUENTOS GARDELIANOS, premiado romance em que conta, pelo depoimento de 12 mulheres a história do nascimento de Carlos Gardel, em Tacuarembó.

 

Uma vida intensa e produtiva do apaixonado escritor, que era o vetor de um entusiasmo, de uma alegria estimulante e que contagiava a todos. Que o abordavam a cada momento, em todos os locais, em Pelotas, em Porto Alegre, em Jaguarão, em Rio Branco, e a todos atendia com seu sorriso inesquecível – tinha sido o professor de todos, em Direito, em Letras, em Jornalismo e, principalmente, na Vida.

 

Não concessivo, jamais se permitiu ferir seus princípios e suas convicções em nome de um pragmatismo de conveniências e de oportunidades. Dessa forma, seu caminho foi cheio de pedras e de inúmeras armadilhas assestadas contra ele. Nunca as enfrentou com ressentimentos ou rancor. Apenas as testemunhava e permanecia em silêncio. Teve motivos consistentes por sofrer profundas injustiças, prejuízos materiais e agressões físicas ao tempo da Ditadura Militar, como professor e como jornalista. Foi sabotado e discriminado em várias ocasiões. Nunca reclamou. Nunca foi escolhido para patrono da Feira do Livro de Porto Alegre, apesar de vencedor de duas Bienais Nacionais de Literatura, de set Açorianos, do Prêmio Fato Literário RS e da Comenda do Ministério da Cultura.

 

Eram outras gestões, outros patronos, outros interesses.

 

Sentia muita falta de sua companheira de vida toda, Marlene Rosenthal Schlee, que sempre fora seu esteio, sua força, sua memória, sua mais rigorosa crítica literária e a melhor leitora. Mãe de seus três filhos, Sylvia, Andrey e Aldyr. Dizia com tristeza que não sabia fazer nada sem ela, “nem um ovo sabia fazer”, e que isso era o sinônimo de sua solidão.

 

Essa solidão repentina e monumental que o escritor nos legou, a falta inesperada e irreparável que nos desconsola e desampara, a memória de o que já não será e de tudo o que ele já tenha feito para nós. Devemos ficar atentos e ler e reler os livros de Schlee.

 

Por Alfredo Aquino/Artista plástico e editor da Edições Ardotempo.

  

Fonte: Zero Hora/Caderno DOC em 25/11/2018.