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Homens pela Escrita — [2] Macunaíma
Homens pela Escrita — [2] Macunaíma

HOMENS PELA ESCRITA – PARTE 2/MACUNAÍMA

O HEROÍSMO DA PREGUIÇA

 

“Macunaíma” é, a seu modo, um romance de formação. Invoco aqui o termo não no seu sentido mais típico, o de relatos modorrentos sobre os primeiros passos biográficos de personagens pertencentes à aristocracia francesa; tampouco me refiro ao conjunto de descrições autoindulgentes das dificuldades sentimentais da vida de um pequeno burguês qualquer; não, não se trata disso.  Trata-se da formação do povo brasileiro, essa entidade a um só tempo irritante e apaixonante.  Meu argumento aqui é que “Macunaíma” é um tipo de bildungsroman tupiniquim rapsódico sobre a nossa identidade nacional.  Vou além:  esse livro foi, de certa forma, um dos inventores do Brasil (como Barbosa Lessa e paixão Côrtes foram, ainda de certa forma, inventores do Rio Grande do Sul).  Os ficcionistas têm esse poder.  Macunaíma é o Brasil.  Ele é forte como este país.  E é também insuficiente como o Brasil; importante como o Brasil.

                     

Macunaíma não é um herói nos moldes daquilo a admirar desde cedo:  que voa com maestria, que desce de telhados assustando bandidos, que promete a reconstrução de uma cidade corrompida.  Ele é o tipo de personagem para o qual nós não gostamos de olhar.  Ele é o protagonista que não nos faz desejar participar da história.  E nisso reside a força desse romance.  A todo o instante o livro parece gritar:  “De te fabula narratur”.  E, sempre que isso acontece, o leitor tende a tapar os ouvidos, amolado.  Sim, o Brasil profundo não é turístico nem rentável.  Lançado em 1928 (ano do “Abaporu”, de Tarsila do Amaral, e do Manifesto Antropofágico), o romance tem enredo banal:  Macunaíma passa às voltas com estratagemas para resgatar seu amuleto que fora roubado por um desafeto.  Sem esse depositário de sorte, nada terá sentido para ele.  O fetichismo aparece aqui como signo de miséria e serve como comprovação de nossa conhecida inclinação às superstições. 

                                 

Se a história contada é banal, poderá ponderar a leitora, ou o leitor, o que faz, então, deste livro um dos mais relevantes romances escritos em língua portuguesa?  O que faz de “Macunaíma”, afinal, “Macunaíma”?  Bem, eis uma explicação plausível:  o inovador da obra não é o fato de ela orbitar em torno de um protagonista negro (“preto retinto, filho do medo da noite”); o inovador em Macunaíma é o fato de ele ser brasileiro.  “Macunaíma”, bem como o próprio modernismo, é a melhor contribuição da cultura paulista para o Brasil.  E é, também, o maior golpe cultural que a elite brasileira já levou.  Ele estabelece não apenas que o Brasil é escuro, negro, indígena, como também postula que o escuro, o negro e o indígena são brasileiros.  Entender o poder dessa proposição dupla é fundamental para compreender “Macunaíma”.  De resto, a infância sem perspectivas do protagonista ”seu divertimento era decepar cabeça de saúva”) e sua vida sem propósito social continua sendo um retrato das parcas possibilidades do brasileiro médio.

                                            

Para Sergio Buarque de Holanda, trata-se do embate do Homo faber contra o Homo divinans.  Grosso modo, seria, então, a literalização do embate ancestral entre o que podemos realizar e o que nos é concedido pela natureza; natureza essa que, para o autor, traz em sua versão brasileira o desvio, a picardia (em detrimento da versão europeia, mediada pelo ideal rousseuniano, no qual o que é selvagem é bom e passível de corrupção pelas mãos do selvagem civilizatório).  Em “Macunaíma” o natural não é bom.  Ao aproximar-se do fim da trama, o narrador especula:  “Estava muito contrariado porque não compreendia o silêncio.  Ficara defunto, sem choro, no abandono completo”.  Eis a ambiguidade de um personagem que se recusara a falar porque “tinha preguiça”, mas que, ao mesmo tempo, se inquieta com a ausência de fala dos outros.  Ele lembra o herói sem nome de “Homem Invisível”, do estadunidense Ralph Ellison, mas, ao contrário dele, Macunaíma afasta-se de todos para viver no céu, tornado constelação, encontrando no firmamento sua salvação.

                                   

Para Antonio Candido (sim, aquele-que-está-acima-de-todos-nós), Mário de Andrade foi “um intelectual simpatizante da esquerda que soube manter a integridade da visão estética numa obra marcada pela participação ideológica”.  Isso significa que sua obra não se tornou um conjunto de intenções panfletárias, como a de Jorge Amado, embora tenha inegável inspiração política.  Na época da publicação de “Macunaíma”, o país estava povoado pela ideologia racialista.  Havia a ideia de que todos os males do Brasil eram oriundos da mistura de uma raça boa (a branca, do colonizador) com duas raças ruins (a negra, escravizada, e a indígena, nativa).  Era necessário, então, substituir a fracassada raça brasileira, inclinada à violência e à burrice, por europeus, reconhecidamente inclinados à cordialidade e à intelectualidade.  Mario de Andrade passou grande parte de sua vida em guerra contra essas boçalidades racistas.  Prefiro acreditar que ele venceu.

 

Fonte:  Correio do Povo/Caderno de Sábado/Luiz Maurício Azevedo (Doutorando em Teoria e História Literária pela Unicamp e autor de “Mamíferos Digitais” – Flâneur) em 22/08/2015.