Translate this Page




ONLINE
21





Partilhe esta Página

                                            

            

 

 


Jorge E. Assumpção: Da Abolição à Discriminação
Jorge E. Assumpção: Da Abolição à Discriminação

DA VITÓRIA ABOLICIONISTA À LUTA CONTRA A DISCRIMINAÇÃO

 

Historiador analisa a importância do contexto do 13 de maio para as lutas iniciadas em Palmares/AL.

 

Qual o afro-brasileiro que nunca refletiu sobre festejar ou não o 13 de maio de 1888? Questão que divide os grupos e lideranças negras e os estudiosos da escravidão e da negritude. Teria sido a Abolição apenas “coisa de branco”, como afirmou Octavio Ianni e outros analistas? Ou as narrativas predominantes da historiografia oficial retiraram o foco dos seus principais agentes, os trabalhadores escravizados? Seria Isabel, redentora ou apenas escravista que sancionou o conquistado pela luta dos trabalhadores escravizados?

 

O Brasil foi talvez o país que mais se serviu da escravidão negra. A servidão negra foi o principal marco do nosso passado. Quase nada entendemos do Brasil se a desconsiderarmos. Dos 518 anos de história do Brasil, 356 ocorreram sob o escravismo. Portando, a maior parte da nossa história. O Brasil foi uma das primeiras nações a instaurar o cativeiro e a última a aboli-lo, há apenas 130 anos, em 13 de maio de 1888! Transcurso que ocorrerá sem maiores comemorações, diferentemente do ocorrido quando do I Centenário, antes do movimento negro, em sua ampla maioria, ter repudiado a data.

 

O término do sistema escravista foi cantado em prosa e verso como se fosse dádiva da Princesa que, apiedada, libertou a pobre gente negra. Narrativa que corroborou o mito da democracia racial, que teve em Gilberto Freire seu grande expoente. Ou seja, a miragem de nação sem problemas raciais, onde a escravidão fora superada sem a violência terrível da sublevação vitoriosa dos cativos no Haiti ou a mortandade da Guerra da Secessão, que deixou sequelas nos Estados Unidos até os dias atuais.

 

No Brasil teria sido diferente, devido à índole afável de seu povo. Nós nos diferenciaríamos das demais nações no que diz respeito às relações entre brancos e negros. Aqui, a abolição da escravatura teria sido fruto da consciência e da benevolência da piedosa princesa e dos escravistas. Os embates posteriores não seriam frutos de conflitos raciais, mas conflitos sociais, jamais fortes.

 

Todavia, a verdade é que, antes de ser “coisa de branco”, a abolição foi mesmo “Coisa de negro”. Quando foi aprovada a dita Lei Áurea, a escravidão já estava estraçalhada, por força da luta violenta dos trabalhadores escravizados, com o apoio dos abolicionistas radicais. Fato em geral pouco registrado por nossa historiografia.

 

Os anos 1880 foram marcados por forte instabilidade social, causada pela escravaria que cada vez mais desobedecia à ordem instituída, através de fugas, aquilombamentos, revoltas, etc. O veredito já fora dado. Quando da Abolição, em 13 de maio de 1888, o Brasil contava com cerca de setecentos mil trabalhadores escravizados. Dois terços deles residiam na área cafeeira, que se mobilizou até o fim contra a extinção do cativeiro.

 

São incontáveis os cativos que tombaram pelo caminho, na luta pela libertação, até o 13 de maio. Abolicionistas radicalizados pagaram também o imposto do sangue, por lutarem contra a escravidão. Finalmente, nos últimos meses, com as fazendas desertadas de trabalhadores, vendo-se perdida, a oligarquia cafeicultora exigia apenas indenização, no que foi também derrotada. Era o fim! Os trabalhadores ainda escravizados haviam sido vitoriosos. A destruição do cativeiro, a derradeira batalha, teve os cativos negros como vencedores. Nas fazendas e cidades soaram o som duro dos atabaques festejando a libertação!

 

Não era, porém, o fim da luta. Havia velhas e novas demandas insatisfeitas, avançadas, entre outros, por abolicionistas como Nabuco, Patrocínio, Rebouças, Dantas. O historiador Robert Conrad lembra que eles viam na vitória gloriosa o primeiro passo para a democratização do Brasil. Muito ainda faltava para a libertação dos efeitos do trabalho forçado. Destacavam a necessidade de educação, de trabalho e da distribuição de terra. A democratização da propriedade do solo pôs em pânico as chamadas elites, que contra-atacaram com o golpe de Estado de 15 de Novembro de 1889. A República federativa e oligárquica pôs fim ao abolicionismo, primeiro grande movimento democrático nacional, que tivera sua grande vitória em 1888 e lutava pela democratização política e social da nação brasileira.

 

Os anos 1970 foram de intensa luta social pela redemocratização do Brasil. O movimento negro organizado participou na luta contra a ditadura, avançando pauta específica: denunciou o racismo e valorizou os protagonistas negros de nosso passado. Naquele momento de radicalização política, surgiu o 20 de novembro, proposto pelas direções negras como celebração substituta do 13 de maio. A falta de conquistas complementares após 1888 fez com que o movimento negro, nos dias de hoje, passasse a celebrar o 20 de novembro, negando a real importância da Abolição. Propôs exaltar, em vez do fim da escravidão, a data de morte de Zumbi dos Palmares, herói popular negro máximo da nossa história. Naqueles anos, o historiador rio-grandense Décio Freitas publicara seu luminar trabalho PALMARES: A GUERRA DOS ESCRAVOS.

 

Não há qualquer contraposição entre as duas datas e celebrações. Ambos sucessos registram momentos altos, mas distintos, da resistência dos trabalhadores escravizados. O imprescindível é resgatar a verdadeira história da revolução abolicionista. Abandonar as narrativas apologéticas sobre a “princesa redentora” e restabelecer os trabalhadores escravizados como sujeitos de sua história. Se a Abolição foi fruto da magnanimidade de Isabel e de seu pai, por que não foi realizada quarenta anos antes?

 

O movimento negro popularizou a figura de Zumbi de Palmares. Uma enorme contribuição. Aquela importante saga histórica foi encravada em forma inarredável nas narrativas sobre nosso passado. Passado de dor, violência e luta. O movimento negro atacou o mito da democracia racial. Denunciou o estado de miséria da enorme parte da população afrodescendente, que se mantém até os dias atuais. Nos últimos tempos, denuncia o genocídio da juventude pobre e trabalhadora negra, em grande parte nas mãos das forças policiais. Um morto a cada 23 minutos!

 

O movimento negro retomou as propostas do abolicionismo. A Abolição era salto imenso que devia ser seguido de reformas profundas que começassem a resgatar social e politicamente os afrodescendentes. Após a Abolição, o abolicionismo não se dissolveu, seguindo forte até o golpe da proclamação da república federalista e elitista. O 13 de Maio foi enorme vitória dos oprimidos. Um avanço radical de toda a sociedade. Não era fim, apenas novo início da luta dos afro-brasileiros contra a discriminação e pelos direitos sociais. De certo modo, o 13 de Maio foi a vitória da luta celebrada no 20 de Novembro. Palmares e Abolição são faróis apontando para o futuro a ser construído para os descendentes dos trabalhadores escravizados e para toda a população brasileira.

 

Fonte: Correio do Povo/Caderno de Sábado/Jorge Euzébio Assumpção (Historiador, membro do Neabi (Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas da Unisinos)), autor de Pelotas: Escravidão e Charqueadas) em 12/05/2018.