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Felipe Pena: Entretenimento como Conceito de Valor
Felipe Pena: Entretenimento como Conceito de Valor

O ENTRETENIMENTO COMO CONCEITO DE VALOR

 (Todas as Narrativas do Mundo)

A ARTE, QUANDO BOA, É SEMPRE ENTRETENIMENTO = BERTOLT BRECHT.

 

A epígrafe acima marca um posicionamento estético e político de Bertolt Brecht.  Ao tratar o entretenimento como pré-condição para aferir o valor da arte, o autor chamava a atenção para a origem da palavra, que vem do latim intertenere, cujo significado é “prender no interior”.   Desta forma, Brecht nos remetia às antigas culturas orais, quando a arte precisava ser representada com habilidades específicas para que não se perdesse no tempo.  Era preciso prender o espectador, mexer com suas emoções, trazê-lo para dentro das histórias.  Era preciso entretê-lo.

  

Mesmo com o advento da escrita o entretenimento continuou no proscênio das artes.  Os versos de Homero (ou quem os tenha escrito) nos entretiveram com as aventuras de Ulisses e a luta de Aquiles em torno de sua honra.  Shakespeare concatenou a erudição e o conhecimento histórico com técnicas   dramatúrgicas capazes de entreter o público que frequentava o The Globe, em Londres.  Balzac publicou boa parte de seus romances em jornais, sempre preocupado em produzir ganchos aos finais dos capítulos para que os leitores comprassem o exemplar do dia seguinte.  Nenhum deles teve o valor da obra questionado porque entretinha o público.  Pelo contrário, o reconhecimento dessa habilidade está diretamente ligado à perenidade de seus nomes.

  

Então não custa perguntar: por que a contemporaneidade demoniza o entretenimento como conceito de valor na arte, relegando-o a um plano menor, sem importância?  Talvez as “habilidades específicas” tenham se perdido e ninguém mais saiba como entreter.  Ou, quiçá, exista uma cultura do hermetismo se organizando como forma de oposição aos “opressivos” meios de comunicação de massa.  São hipóteses nas quais não acredito, mas que poderiam ser levantadas.  O que não pode ser ignorado é que essa aversão ao entretenimento tem origem e organização.  E que é no campo literário que ela se manifesta com maior intensidade.  Principalmente, na bolha da literatura brasileira contemporânea.

 

Nossos jovens escritores não têm leitores, mas têm público.  Na Flip, a fashion week da literatura brasileira, a reclamação contra as baixas tiragens tem endereço certo, o entretenimento.  Os escribas argumentam que escrevem sem a preocupação com o leitor, portanto não poderiam entretê-lo.  E quem o faz obviamente não tem qualquer valor artístico.  Até quando a crítica se debruça sobre um escritor estrangeiro, a denominação do entretenimento está presente.  Como neste trecho da resenha de Joca Reiners Terron sobre o livro 1Q84-VOL.2, de Haruki Murakami, publicada na Folha de S.Paulo: “Ponto inegociável é que a verdadeira literatura deve ser crime que recompensa, não mero entretenimento”.

  

Embora o próprio Joca Terron seja uma das exceções em nossa bolha literária, já que não participa de panelas e compõe narrativas capazes de entreter um público amplo e heterogêneo, sua concepção sobre o entretenimento é patentemente negativa.  Seja por adesão, seja por contaminação, a tendência é acatar essa concepção sem discuti-la em um ciclo interminável de afastamento dos leitores.

 

Em resumo, boa parte da literatura brasileira contemporânea presta um desserviço à leitura.  Os autores não estão preocupados com os leitores, mas apenas com a satisfação da vaidade intelectual.  Escrevem para si mesmos e para um ínfimo público letrado e pretensamente erudito, baseando as narrativas em jogos de linguagem que têm como único objetivo demonstrar uma suposta genialidade pessoal.  Acreditam que são a reencarnação de James Joyce e fazem parte de uma estirpe iluminada.  Por isso, consideram um desrespeito ao próprio currículo elaborar enredos ágeis, escritos com simplicidade e fluência.  E depois reclamam que não são lidos.  Não são lidos porque são chatos, herméticos e bestas.  Entretanto, são referendados pela crítica universitária.

  

Para os doutores da Academia, entreter significa passar o tempo.  É um termo pejorativo, aviltante, usado para diminuir uma obra.  Mas não é o que ele significa para quem se envolve com um livro e não consegue largá-lo.  Em literatura, entretenimento é sedução pela palavra.  É a capacidade de envolver o leitor, fazê-lo virar a página, emocioná-lo, transformá-lo.

 

É esse o conceito de entretenimento que defendo para a ficção brasileira.  Tenho a impressão de que as outras artes já o utilizam dessa forma, mas a literatura ainda parece padecer da velha dicotomia entre o erudito e o popular.  O paradigma do biscoito fino é uma falácia de quase cem anos na cultura deste país.  É o argumento da exclusão.  São os brioches da nossa literatura, difundidos pelas Marias Antonietas encasteladas na linguagem empolada do hermetismo.  Mas a guilhotina vai chegar. 

  

O livro do ensaísta búlgaro Tzvetan Todorov, um dos herdeiros mais ilustres do formalismo, é um exemplo de mea culpa. Em A LITERATURA EM PERIGO (Difel, 2009), Todorov afirma que o principal risco que ronda a literatura é o de não participar mais da vida cultural do indivíduo, do cidadão.  E isso acontece, segundo o autor, porque os escritores não se preocupam com a afetividade e o prazer do leitor, limitando-se apenas a aspirar ao elogio da crítica.

O irlandês C. S. Lewis dizia que a grande leitura não exige perícia ou força; exige, ao contrário, desarme e paixão.  Lewis era um defensor do leitor leigo, “comum”, ou seja, “daquele que lê sem nada esperar porque o livro o agarra e ele não consegue mais largá-lo”.

  

É em busca desse leitor que vai a literatura que tem o entretenimento como pilar narrativo.  Um conceito ao qual se deve atribuir valor artístico e estético.  Um termo que não pode ser rotulado ou tratado com preconceito.  Uma habilidade, como nos ensinou Brecht, cuja função é trazer o que há de melhor para o maior número de pessoas, usando a sedução como estratégia.

 

Não há nada de superficial em escrever fácil.  A escrita simples é a laboriosa tradução da complexidade.

 

Fonte:  Correio do Povo – CS Caderno de Sábado/Felipe Pena (Doutor em Literatura pela PUC/RIO, jornalista, psicólogo, romancista, professor da UFF, Autor de 15 livros) em 19 de dezembro de 2015.