UMA LUTA DE ERICO
Há 75 anos, em uma Porto Alegre polarizada, que acabara de ver surgir a Faculdade de Filosofia da UFRGS, um padre do Colégio Anchieta execrava o então novo livro de Erico Verissimo, O RESTO É SILÊNCIO, em uma polêmica que foi parar nos tribunais.
No centro da cidade, havia uma livraria conhecida de todos. Na fachada dessa livraria, havia vitrine para os livros. No dia em que começa essa história, as vitrines estavam tomadas por um livro específico, lançamento de um autor local, que alcançava destaque inédito para um conterrâneo. A cidade era Porto Alegre, a livraria era a Globo e o livro se chamava O RESTO É SILÊNCIO. Era 1943, 75 anos atrás.
Erico Verissimo, o autor, há cinco anos vivia um auge: desde o lançamento de OLHAI OS LÍRIOS DO CAMPO, milhares de leitores ofereciam suas mais íntimas energias para produzir o sentido que um romance de impacto sabe produzir. O livro esgotou 3 mil exemplares em duas semanas, numa cidade com 270 mil habitantes.
Editor e autor, Erico era visto como um autor moderno por excelência. Desde CLARISSA, seu primeiro romance, de 1933, passando por CAMINHOS CRUZADOS (1935), MÚSICA AO LONGE e UM LUGAR AO SOL (1936), depois o best-seller OLHAI OS LÍRIOS NO CAMPO e a seguir SAGA (1940), o autor abordava temas do presente, ambientados na cidade grande, sem se afastar de questões espinhosas como a pobreza urbana, o papel da mulher, a hipocrisia burguesa e os dilemas do engajamento da arte nas questões políticas que a II Guerra Mundial impunha.
Acresce que escrevia como raros brasileiros: em lugar da fascinação pela frase de efeito tão ao gosto da tradição francesa, Erico se guiava pelos padrões mais modernos da narrativa de língua inglesa. Isso quer dizer que, atualizado nos temas e problemas que enfrentava, dialogava com o famoso leitor médio, o mesmo que via fitas do cinema narrativo norte-americano, com o qual, de resto, nosso escritor tinha mais de uma afinidade. Por isso vendia bem.
Tudo isso antes de conceber e escrever sua obra definitiva. O TEMPO E O VENTO, publicada a partir de 1949.
Em 1943, Erico enfrentaria experiência dura na arena sempre fluida da opinião pública. Não só porque lançava um romance novo, que sucedia o megassucesso de OLHAI OS LÍRIOS DO CAMPO e ao quase fracasso de SAGA (livro que o próprio autor confessava ser insatisfatório), mas porque seria posta à prova outra dimensão de seu prestígio.
Era uma conjuntura polarizada, que lembra 2018, tendo de um lado as posições pró-fascistas (Mussolini estava no poder desde 1922, Hitler desde 1933, Vargas desde 1930 e a partir de 1937 em regime de exceção) e de outro a visão pró-comunista (Stálin vivia o auge de sua força, e em 1935 acontecera a Intentona Comunista no Brasil).
A esses dois polos aderiam as outras posições: era-se a favor ou da primeira, ou da segunda. No que interessa ao caso, vale lembrar que o Getúlio autoritário do Estado Novo contava com as simpatias da generalidade do clero católico, seja por admiração ao autoritarismo em si, coisa que quadrava bem ao estilo da Igreja – basta lembrar a omissão do papa Pio XII diante do avanço do nazismo –, seja por Vargas encarnar o figurino anticomunista estrito.
Erico ficou de fora dessa polaridade. Embora acusado de simpatias comunistas, com seus personagens marcados de sensibilidade social, em muitas ocasiões assinalou sua discordância com o stalinismo. Mas igualmente abominava atrocidades do lado fascista. Segundo sua lembrança, no SOLO DE CLARINETA, volume 2:
Quando em 1935 as tropas de Mussolini invadiram a Abissínia, firmei o manifesto em que intelectuais brasileiros protestavam contra a bárbara agressão fascista. Protestei também, não uma mas mil vezes, quando em 1937 o Generalíssimo Francisco Franco aceitou o auxílio de tropas da Alemanha e da Itália, que massacraram parte do povo espanhol (…), O pacto russo-alemão que em 1939 permitiu a invasão e a mutilação da Polônia, abrindo aos nazistas o caminho para a conquista da Europa, teve também o meu repúdio, que foi manifestado repetidamente em público. Incontáveis vezes lancei meu protesto apaixonado contra as perseguições e atrocidades de que tem sido vítima o povo judeu em tantas partes do mundo.
Erico não tinha muita parceria em sua convicção política, que ele chamava de socialista democrática e que lhe rendia restrições aos comunistas, dispostos a ver nele uma adesão ao imperialismo norte-americano.
Faltava horizonte arejado na cidade? Sim, e a conjuntura da guerra reforçava a polaridade extremada, numa terra já acostumada à divisão em metades. Curiosamente, é no mesmo ano de 1943 que começava a funcionar a Faculdade de Filosofia da Universidade de Porto Alegre, que no futuro seria Federal e conhecida pela sigla UFRGS. Cursos de Filosofia, História e Geografia, Pedagogia e Letras passaram a preparar os futuros professores de Ensino Médio.
Vale Lembrar criação da Filosofia – funcionando ao lado de cursos mais antigos na cidade, como Medicina, Direito e Engenharia – havia correspondido a uma iniciativa política de um grupo católico, liderado por Armando Câmara, Ruy Cirne Lima e Eliseu Paglioli, entre outros.
A Faculdade de Filosofia mostrava o amadurecimento da vida intelectual gaúcha. Já havia uma editora como a Globo, liderada por Erico na gestão editorial, à frente de uma instituição de destaque em todo o país. Mesmo situada longe dos maiores mercados brasileiros, a Globo era moderna em muitos sentidos – era verticalizada, produzindo de alfa a ômega tudo que dizia respeito ao livro: acolhia originais, comprava direitos e fazia traduzir, produzia os livros, imprimia-os e os vendia, em lojas suas ou terceiros. A Globo era como uma unidade editorial universitária de país desenvolvido, agregando linhas editoriais as mais variadas, do didático ao filosófico, passando pela diversão culta e pela utilidade empresarial, e contratando intelectuais de alta capacidade.
Na virada de fevereiro para março de 1943, saiu um texto sobre o novo romance de Erico na revista O Eco, órgão interno do colégio Anchieta. Parece pouca a força desse meio impresso, mas nada disso: o Anchieta era o epicentro da vida intelectual católica na cidade. Por seus bancos passavam os filhos das famílias mais importantes do mundo jurídico, do político e do empresarial. Por isso, o texto do padre Fritzen logo chegou ao miolo da opinião pública do Estado.
O que ele dizia? Evocava a morte recente de Getúlio Vargas Filho, ex-aluno do Anchieta. Nascido em 1917, engenheiro formado nos EUA, Getulinho havia falecido em 2 de fevereiro, em função de poliomielite. Era o quinto e mais jovem dos filhos do presidente. O padre Fritzen enaltecia as virtudes do antigo aluno, um contrito católico – e não falava nada, claro, de seu irmão mais velho, que fora aluno do Militar e não do Anchieta, que se chamava Lutero, homenagem do pai ao teólogo alemão famoso por sua dissidência contra a Igreja de Roma. (Vargas nunca foi linear, e na juventude atacou a igreja, em público, mais de uma vez) Co sidere o leitor que a época é anterior ao Concílio Vaticano II, que finalmente abriu a Igreja Católica ao diálogo com os protestantes. Em 1943, quase não havia nem conversa entre essas duas partes, porque Roma não permitia.
Depois padre Fritzen atacava, sem nexo aparente com a morte do ex-aluno, o livro novo de Erico. “Vitrinas cheias de livros… neste dia de quase um autor só… grande número de exemplares. E muita gente a entrar e muita gente a sair… com veneno na mão… Ah, se Getúlio soubesse.” O veneno era O RESTO É SILÊNCIO. E assim, com um nexo que só o padre enxergava, Erico era exposto à execração pública, como autor de veneno que corrompia a sociedade. Dizia do livro que era imoral, falso, sujo. Chega a postular que, para lutar contra Erico, seria o caso de apelar para a Higiene Pública e a Liga de Defesa Nacional.
A história toda viria a ser analisada, por pesquisadores, a partir dos anos 1980. Alguém já observou, por exemplo, que um dos personagens de Erico, Marcelo Barreiro, seria uma caricatura de Armando Câmara – o líder dos intelectuais católicos da cidade e coordenador do jovem curso de Filosofia. Por outro lado, o livro de Erico mostrava a hipocrisia de homens católicos como Aristides, casado que mantinha uma amante. Erico estava fazendo o que sempre fizera: analisar a matéria oferecida pela vida, segundo uma visada realista crítica cujo resultado era um humanismo libertário, antidogmático à esquerda e à direita.
Em abril, começaram as aulas na Faculdade de Filosofia; no mesmo mês, Erico Lopes Verissimo ingressa com uma queixa-crime contra o padre Fritzen. Seus advogados eram Júlio Teixeira, Arando Temperani Pereira, Valdir Borges e Paulino de Vargas Vares, que vinha a ser pai de Luiz Paulo de Pilla Vares, futuro aluno do Anchieta, jornalista r secretário da Cultura de Porto Alegre. O processo ataca a “publicação injuriosa”, cujo objetivo era lançar o nome do escritor “ao desprezo e ao vilipêndio públicos”, e pede punição ao articulista de O Eco conforme decreto que abordava os delitos de imprensa.
É possível que a origem dessa ação tenha sido “a Globo”, a poderosa instituição industrial, comercial e cultural. Ela e Erico tinham notável força, com origem no mercado e na opinião pública; do outro lado, estava o Anchieta, o padre, a Igreja Católica em suma, uma instituição poderosa em si e pela aliança com o governo federal. O padre recebeu Moção de Apoio, datada de 28 de abril; nela, é dado como inquestionável seu poder como professor responsável pela formação do caráter dos alunos. Mas já em 2 de maio é publicado um amplo Manifesto de Solidariedade a Erico Verissimo.
A Moção é assinada por todo o grupo católico, incluindo professores da Filosofia (vale notar que nenhuma mulher tem seu nome consignado na nominata); já o Manifesto é assinado por escritores e artistas em muito maior número, além de advogados e outros profissionais, entre os quais se salientam muitos comunistas, muitos sobrenomes judeus e muitas mulheres.
A posição do padre Fritzen, objeto da queixa-crime, será defendida por um grupo de advogados católicos, que argumentava a favor da liberdade da crítica (e do patrimônio moral dos jesuítas) e tenta virar o jogo, acusando Erico e a Globo de fazerem circular livro que contém “ofensa à moral e aos bons costumes”, mas antes de tudo argui uma questão preliminar: a queixa-crime teria sido feita fora do prazo legal. O juiz do caso acolhe essa preliminar, de forma que o padre não vai a julgamento. O lado de Erico recorre, mas o recurso é negado com base no mesmo detalhe do prazo inepto.
Em setembro, após contatos que vinham de mais tempo, Erico e a família partem para uma temporada de dois anos na Califórnia (EUA), onde o escritor viveria uma experiência intelectualmente muito rica como professor visitante – e onde elaborou um livro de impressionante fluência, publicado em inglês em 1945 e em português apenas meio século depois, a BREVE HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA. Ali se pode avaliar o quanto Erico mergulhou na história cultural do Brasil, preparando o salto que viria a dar em O TEMPO E O VENTO.
Terminada a guerra, derrotado Hitler e deposto o Getúlio do Estado Novo, fica óbvio que Erico tinha estado o tempo todo do lado certo: do lado da liberdade, da denúncia dos autoritarismos, da defesa da democracia, contra a intolerância e os regimes de força. Em suas memórias, o escritor diz que no processo contra o padre não quis nem esperou punição, mas peleou em defesa do direito elementar de criar livremente sua obra.
Erico continua sendo perfeitamente legível, bem ao contrário de muitos de seus oponentes. Sua obra e sua memória são um legado de altíssimo valor para os amantes da liberdade, da democracia e da luta pela dignidade.
Fonte: Zero Hora/Caderno DOC/Luís Augusto Fischer/Escritor e Professor de Literatura da UFRGS em 22/07/2018.