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A Livraria como Método de Pensamento
A Livraria como Método de Pensamento

A LIVRARIA COMO MÉTODO DE PENSAMENTO

 

Se há um novo Brasil a pensar, ele requer debates, lançamentos e estadas mais longas junto aos livros”

 

Durante oito anos, duas vezes por semana, frequentei a antiga e pequena livraria Cultura que ficava ao lado de minha primeira análise. Antes ou depois, na tristeza ou na alegria, na pobreza ou na riqueza: livros. Nos anos 1990, que estão logo aí, a música era em CDs, os computadores faziam tela azul semana sim, semana não, e para os fanáticos existia um sistema chamado Bbs pelo qual era possível, veja só, falar com seu amigo por meio de uma internet discada via telefone fixo. Neste universo, a relação com livros movia-se lentamente. Chegou um novo. Ninguém comprou aquele. Em ocasiões especiais, uma edição importada. Até hoje guardo inesquecível, em meu ventrículo esquerdo, o gesto supremo pelo qual minha futura esposa empenhou três meses de sua bolsa de iniciação científica para comprar os dois volumes do Vocabulário de Filosofia de Lalande, em edição portuguesa.

 

A disposição dos livros, o ciclo de reposições, a lógica das traduções, a ascensão e a queda de autores, tudo isso não era apenas capricho estético, mas um verdadeiro dispositivo de pensamento. Por que de repente, Antropologia ficou perto dos livros de viagens? Onde termina autoajuda e começa história das religiões? Cadê a linha imaginária que separa tudo isso de Jung? A cada livraria, seu estilo de pensamento: pop na Belas Artes, meditação na Horizonte, trash no sebo Brandão, vanguarda no Bexiga, tranqueiras universitárias na Hay-Kay.

 

Havia também a relação com os vendedores, sempre dispostos a abusar daquele que já havia caído em tentação, puxando sorrateiramente o irmão da pressa recém capturada. Cheguei a pegar o sistema dos velhos livreiros que iam de consultório em consultório trazendo os quitutes franceses e as edições piratas de Lacan.

 

Nunca mais teremos os benefícios desta cultura da escassez, que felizmente terminou, trazendo a selva amazônica onde todos os saberes se encontram. Minha preocupação é com o sistema de pensamento que dependia de agrupamentos e visualidades espaciais das relações entre autores, ideias e séries compostas por continguidades e contrastes geográficos onde a curiosidade encontrava uma espécie de ordem e limite natural que precisava ser decifrada.

 

Agora que o monstro monumental das megalivrarias, que também adorei frequentar, parece estar deitando de vez, talvez reinventemos algum sistema espacial de pensamento, no qual se poderá encontrar de novo gente amiga nas livrarias. Junto-me aqui à cruzada de Luiz Schwartz em busca de um novo velho tamanho para as pequenas grandes coisas feitas de letras. Se há um novo Brasil a pensar, ele requer debates, lançamentos e estadas mais longas junto aos livros. Como naquele tempo lento, necessário para pensar com o livro em mãos, fazendo escolhas decisivas para seus próximos anos. Como no tempo futuro no qual editores, autores e livreiros encontrarão com gente de museus, coletivos e escolas para fazer a revolução que já adiamos demais.

 

Fonte: Zero Hora/Christian Dunker/Psicanalista (chrisdunker@usp.br) em 16/12/2028.