CRÔNICA DO SÉCULO XIX – BALAS DE ESTALO
Artilharia letrada dos setores médios: as crônicas das Balas de Estado e contradições do fim do escravismo oficial no Brasil por colaborador do Caderno de Sábado.
O Brasil do início de 1880 entrava nos últimos anos do escravismo oficial e do Império. As disputas ideológicas, materializadas na produção cultural, ganhavam em diversificação desde a década anterior. A imprensa estava no centro de todos os debates. Jornal do Comércio, Gazeta da Tarde, O País, O Apóstolo e Cidade do Rio são alguns dos jornais que debatem e disputam posições nesse contexto. Entre eles, um em específico, a Gazeta de Notícias (fundado em 1875 e que circulou até 1942) se diferenciou por suas propostas de ampliação do público leitor, mesmo em contexto tão restrito em termos de alfabetização e renda. Buscando maior circulação de seus exemplares, esse jornal passou a ser vendido de forma avulsa (até então só se vendiam assinaturas) e a um preço mais acessível do que a média – o que não quer dizer que fosse barato para os níveis salariais até hoje ridículos do Brasil. Era uma tentativa, no entanto. Como é recorrente nesse país que não é para principiantes, esse esforço “civilizatório” estava assentado em mecanismos horrorosos: trabalho infantil para a distribuição dos exemplares e anúncios de escravizados na parte publicitária do periódico, que chegava a ocupar mais da metade de suas seis páginas em média. Nas palavras hoje já clichês de Walter Benjamin: “Nunca houve um monumento de cultura que também não fosse um monumento da barbárie”. A Gazeta é mais uma página complexa dessa combinação.
Contudo, para além dessa dimensão material, havia um estilo marcante nesse periódico, que consistia em vazar em linguagem considerada mais popular os assuntos do momento. Machado de Assis, colaborador por décadas da Gazeta, chegou a afirmar em suas cartas que o critério estilístico era o preponderante para a contratação dos quadros que ocupariam o jornal. Tal critério, ao que tudo indica, foi estabelecido por um dos proprietários e editor-chefe do jornal, figura ainda pouco conhecida, mas que revolucionou o jornalismo brasileiro da época: Ferreira de Araújo. Além de definir a linha editorial do periódico, ele foi o responsável pela criação de uma série de crônicas que se destacou no período. Tratava-se da série Balas de Estalo, que foi veiculada na Gazeta de Notícias entre os anos de 1883 a 1886. Como o nome indica, eram escritos que se propunham a atacar, intervir no cotidiano, mas em linguagem aparentemente doce, bastante humorística, mas em geral irônica no fundo. As edições do jornal que comportam tais escritos podem ser encontradas hoje no site da Biblioteca Nacional. As “balas” eram publicadas diariamente e escritas por autores diferentes, todos usando pseudônimos. O mais conhecido de todos seus colaboradores foi Machado de Assis, que sob o pseudônimo de Lélio (possível referência a um personagem de Molière), comentou minuciosamente o cotidiano político do período. Além dele, muitos outros contribuíram para o sucesso da série: o próprio Ferreira de Araújo, editor-chefe do periódico; o historiador Capistrano de Abreu; Henrique Chaves, jornalista, tradutor e teatrólogo; Valentim Magalhães, escritor polêmico, e Demerval da Fonseca, médico e homem de teatro que depois entraria na política e chegaria a Senador.
No contexto que hoje se sabe, mas já perceptível na época, de transição do império para a República e do escravismo para o trabalho assalariado, os anos que tocaram aos cronistas das Balas de Estalo comentar foram de alterações contínuas do cotidiano, muitas delas mais aparentes do que afetivas. Precariedades do dia a dia, problemas de saúde pública, questões religiosas, autoritarismo das instituições, falta de resolução para os problemas da sociedade, escravidão, violência e repressão, relação entre Brasil e Europa, mandos e desmandos dos grandes proprietários… tudo isso era esmiuçado pelos cronistas com teor crítico e estilo admiráveis. Seus posicionamentos, contudo, não poderiam ser considerados radicais. Assim como a própria Gazeta, suas críticas, embora precisas e fundamentais, guardavam um certo tom reformista. O periódico apoiar ia o golpe que daria início à República no Brasil, o que não impediu seu fechamento temporário quando denunciou que as promessas militares se revelaram falsas. A posição da Gazeta é de tal modo moderada que figuras mais críticas, como José do Patrocínio, deixariam de colaborar com ela ainda em meados da década de 1870, precisando fundar seu próprio jornal para criticar sem meias-palavras a velha e nossa contemporânea elite escravocrata (e do atraso) brasileira.
Em tempos como o nosso em que poucos têm a coragem de dizer o que precisa ser dito àqueles que merecem ouvir, fica a lição a ser apreendida e superada. O brilhante time formado por Ferreira de Araújo nos ensina a buscar comunicabilidade ampla, a tratar dos temas mais relevantes de uma época, mas nos mostra também que sobretudo em contextos ultrarreacionários, as letras não podem se furtar a nenhuma batalha.
Fonte: Correio do Povo/William Moreno Boenavides/Professor do Instituto Federal Sul-Riograndense (IFSUL), campus Sapucaia do Sul, e doutor em Letras pela UFRGS, em 09/02/2019.