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Vamos Ler Dyonélio Machado: por Alcy Cheuiche
Vamos Ler Dyonélio Machado: por Alcy Cheuiche

VAMOS LER DYONELIO

 

Março de 1985.  Convidado por Mozart Pereira Soares, assisto a uma reunião da Academia Rio-Grandense de letras, para a qual seria eleito no ano seguinte.  A sessão é presidida por Dante de Laytano, e quem está com a palavra é o historiador Arthur Ferreira Filho.  Conheço, ao menos de vista, todos os acadêmicos.  Menos aquele senhor de muita idade sentado ao meu lado.  Quem será?

 

Não demorei a ficar sabendo.  Trata-se de Dyonelio Machado, o famoso romancista, autor de OS RATOS, livro que recebera o Prêmio Machado de Assis, maior láurea da Academia de Letras, há exatamente meio século, em 1935.

  

Olho de soslaio para o escritor que tanto me impressionara na narrativa sobre Naziazeno Barbosa, um homem bom, apegado à mulher e ao filho de quatro anos, que sofre as agruras do inferno por estar devendo “cinquenta e três mil réis” ao leiteiro; como se lê, sem preâmbulos no início do livro:

 

“O leiteiro diz-lhe aquelas coisas, despenca-se pela escadinha que vai do portão até à rua, toma as rédeas do burro e sai a galope, fustigando o animal, furioso, sem olhar para nada.  Naziazeno ainda fica um instante ali sozinho.  (A mulher havia entrado.)  Um ou outro olhar de criança fuzila através das frestas das cercas.  As sombras têm uma frescura que cheira a ervas úmidas.  A luz é dourada e anda ainda por longe, na copa das árvores, no meio da estrada avermelhada.

  

O que lhe disse o leiteiro?  A mais terrível das frases:  “Lhe dou mais um dia!” . E saiu daquela maneira escandalosa, exibindo os músculos, exatamente para desmoralizá-lo diante dos vizinhos.

 

Um dia.  Apenas vinte e quatro horas para conseguir aqueles “cinquenta e três mil réis” que não seriam grande coisa, não fosse o pequeno salário que Naziazeno recebe como funcionário público.  E também, o que o leitor logo ficará sabendo, pelas dívidas que contraiu depois da doença do filho.  Deve para o médico, do qual se esconde quando o vê no abrigo dos bondes, para o chefe da repartição, para um fornecedor da Secretaria de Obras, e sabe Deus a quem mais, incluindo outros pobres coitados como seus amigos Duque e Alcides.

  

Em sua casa já se cortou tudo o que era possível:  “gelo, manteiga, quanta bobice inútil e dispendiosa...”.  Mas o leite para o menino?  É quando a mãe, sempre tão pacífica e submissa, rebela-se e o enfrenta:  “Tu queres comparar gelo e manteiga com o leite?  Pobre do meu filho”.  Não sabendo de onde tirar aqueles “cinquenta e três mil réis”, Naziazeno reage com as armas que tem:  “O nosso filho não haveria de morrer por tão pouco.  Eu não morri, e muita vez só o que tinha pra tomar era água quente com açúcar.”  Mas a mulher não se entrega:  “Tu não vês que uma criança não pode passar sem leite?”.

 

Com esta frase termina o primeiro capítulo, curto e intenso, como todos os outros 28 do livro de 192 páginas.  Vamos fazer um cálculo rápido: cento e noventa e dois dividido por vinte e oito... Pouco mais de seis páginas por capítulo.  Uma raridade para a época, a mesma em que Thomas Mann, por exemplo, gastou mil páginas, em longos capítulos, para escrever A MONTANHA MÁGICA.  Aliás, um livro extraordinário, mas difícil de ler para o pouco tempo disponível nos dias de hoje, como outros clássicos mais antigos.  Experimente ler OS MISERÁVEIS na versão completa, a não ser que tire férias para isso... Mas duvido que Victor Hugo, que era um gênio até no “marketing” de seus livros, escrevesse, hoje, a mesma obra com mais de 300 páginas.  O escritor de verdade quer leitores.  E Dyonelio madrugou na arte de escrever muito com poucas palavras.  Aliás, o que Hemingway provaria ser o caminho certo, 20 anos depois, ao ganhar o prêmio Nobel após o imenso sucesso de O VELHO E O MAR, um livro com escassas cem páginas.

  

Mas voltemos a OS RATOS, a obra prima de Dyonelio.  O conflito já está instalado no primeiro e rápido capítulo.  Como Stephan Zweig, em  VINTE E QUATRO HORAS NA VIDA DE UMA MULHER, o escritor só dispõe desse curto espaço de tempo para narrar toda a história.  E aí faz sem desvios ou flash-backs longos, utilizando o tempo verbal correto, o presente do indicativo, para toda a narrativa onde domina a ação, mesmo mesclada com muitas indecisões do personagem:

 

“Um gelo toma conta de seu corpo.  Elo que é tristeza e desânimo.  Voltam-lhe as cenas da manhã, o arrabalde, a casa, a mulher.  Tem medo de desfalecer nos seus propósitos.  Acha-se sozinho.  Aquela multidão parece-lhe inimiga.  Já acha absurdo agora o seu plano, aquele plano tão simples.  Quando pensa em pedir ao diretor sessenta mil réis emprestados – sessenta! – chega a sentir um vermelhão quente na cara.”

 

Interessante.  O escritor poderia ter acabado com o sofrimento de Naziazeno antes do meio do livro, na página 90, quando ele consegue cinco mil réis emprestados para almoçar e resolve jogá-los na roleta.  Seu palpite é o número 28 (o mesmo do número de capítulos do livro), mas ele não tem coragem de investir todo o seu dinheiro em um número só.  Sai o 28, e Naziazeno perde a chance de ganhar “cento e setenta e cinco mil réis”, quantia muito maior do que a de sua dívida.  Se tivesse tido a coragem de arriscar tudo, seu sofrimento e o livro acabariam naquele momento.  Mas a culpa de não arriscar todo seu dinheiro numa única jogada não foi de Dyonelio e sim do seu personagem.  Ele criou Naziazeno como um homem bom, mas derrotado pela vida; não tinha o direito de manipulá-lo.  E só os vencedores têm a coragem de apostar tudo numa só parada.

 

Bueno, perguntam-me se ainda vale a pena ler Dyonelio Machado em 2015, oitenta anos depois que o autor de OS RATOS recebeu o maior prêmio literário, da época, no Brasil.  Tenho absoluta certeza que sim.  Reli o livro e fiquei impressionado como é atual na arte de escrever.  E só posso lamentar que a ideologia comunista, que professou abertamente, um crime para seus inimigos, o tenha colocado no ostracismo literário durante a maior parte de sua vida.

 

Mas agora chega!  Com os olhos da memória, revejo o escritor, com quase 90 anos de idade, sentado ao meu lado na Academia Rio-Grandense de Letras.  Foi a primeira e única vez que o encontrei.  No dia 19 de junho daquele mesmo ano de 1985 (o do cinquentenário de OS RATOS) Dyonelio Machado morreu.  Mas seus livros estão vivos e merecendo novas e muitas edições.

 

Fonte:  Correio do Povo – CS Caderno de Sábado/Alcy Cheuiche (escritor) em 31 de outubro de 2015.