Translate this Page




ONLINE
4





Partilhe esta Página

                                            

            

 

 


Morte Súbita: de Álvaro Enrigue
Morte Súbita: de Álvaro Enrigue

VOLÚPIA DO MARTÍRIO

 

Na fantasia histórica criada pelo mexicano Álvaro Enrigue, uma partida de tênis entre dois mestres do barroco desvela trepidações globais no fim do século XVI.

 

Imagine uma partida de tênis, ou pallacorda, como se dizia na Itália em 1599, tendo de um lado o gênio italiano Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610), o artista que, sempre bêbado, rodeado de prostitutas e vagabundos, “foi para a pintura o que Galileu foi para a física”, alguém que “abriu os olhos e disse o que estava vendo”; e, de outro, Francisco de Quevedo (1580-1645), um do monstros da poesia de seu tempo, que se revelaria ao final “o católico reacionário, o antissemita, o homofóbico, o nacionalista espanhol”. Este inverossímil e fascinante duelo sustenta o romance MORTE SÚBITA, um achado de humor e arte literária do escritor mexicano Álvaro Enrigue. O livro desenha, a golpes saborosos de linguagem, um painel irresistível de um dos momentos mais fascinantes, brutais e transformadores da história.

 

O leitor começa acompanhando, na Piazza Navona, em Roma, o bizarro desafio de raquetes entre o solar, atlético e escarmentado Caravaggio, com sua animada torcida de mendigos, e o coxo, soturno e furioso Quevedo, apoiado por um séquito cauteloso e triste de nobres no exílio. A bola do jogo seria uma peça estofada com os cabelos de Ana Bolena, a rainha herege que arrancou Henrique VIII, e a Inglaterra, dos braços do Vaticano, e em seguida teve a própria cabeça decepada – o detalhe será um dos fios romanescos que no livro amarram a virada do mundo naqueles tempos trepidantes.

 

No rastro do Concílio de Trento e da Contrarreforma, o movimento articulado pela Igreja para fazer frente ao protestantismo crescente, entrelaçavam-se a ferro e fogo a conquista das Américas (que finalmente tornaria de fato o mundo redondo), o império da arte barroca e o desenho político globalizado que não mais nos largaria. No livro, os lances de pela entre Caravaggio e Quevedo, num jogo que dura o tempo da narrativa, ligam os pontos de um universo em que tudo acaba por se revelar em tudo. O espírito de simultaneidade inclui citações eruditas, blasfêmias, encaixes anacrônicos, sacadas ensaísticas e hipóteses ficcionais, sempre sob um coloquialismo vital que é a alma do texto. Não se trata de um simples enfileirar de coincidências, um truque maneirista; antes, assoma no romance um intenso pasmo poético diante da tremenda fusão de culturas que estava em curso, na voz de um narrador que parece não entender bem o que conta.

 

A outra ponta do mundo que o livro desvela é a figura a um tempo monumental e medíocre de Hernán Cortés (1485-1547), o conquistador sanguinário, “ator principal da maior epopeia de seu século e talvez a mais revolucionária da história”. Desprezado até hoje pelo Vaticano, ele depositou aos pés do papa “um mundo completo”. O horror ao conquistador é tanto, lembra o narrador, que no México há um grupo de idiotas nazistas que cultuam Hitler mas acham Cortés um canalha.

 

Cortés é a chave para a visão de mundo que emerge do texto. Se o lado ensaísta de MOTE SÚBITA (dados históricos precisos, sobre pesquisa atenta) trata o personagem monstruoso com a justiça devida, a face poética o eleva ao invencível plano do imaginário latino-americano, sempre pensado e pesado como um contraponto mágico e transcendente à fria racionalidade europeia.

 

A volúpia do martírio, esse sentimento tão poderoso entre nós - “não tinha sentido preocupar-se com o destino porque o roteiro é um só, o fracasso” -, encontra nas impressionantes cabeças decepadas dos quadros de Caravaggio o paralelo europeu. No mundo imperial do asteca Moctezuma, destruído por Cortés com a imprescindível ajuda dos outros povos indígenas, havia “arremesso de cabeças para a massa embotada de alucinógenos” e “corpos decapitados escadarias abaixo”. O horror transparece como uma das faces de uma sutil cosmogonia simbolicamente redentora. Vitorioso, Cortés leva para a Espanha Don Diego de Alvarado Huanintzin, “nobre nauatle e mestre plumista”. Instalado em Toledo, o que se narra num capítulo pleno de graça, o mestre criará impressionantes obras de arte plumária indígena, com temática cristã. Era tal a sofisticação das peças que elas brilhavam e se transformavam, coloridas e mutantes, como se tivessem vida e luz próprias – uma arte de transfiguração, criada sob o efeito dos cogumelos alucinógenos que Huanintzin consome, fiel à cultura nativa.

 

Na fantasia que Álvaro Enrigue manobra em MORTE SÚBITA, Caravaggio tem acesso a uma dessas peças, e se fascina com as figuras maravilhosas de luz e sombra, inteiras feitas de plumas, que se desdobram cambiantes diante de seus olhos quando expostas à claridade das velas. Justamente a sombra e a luz, sobre o impacto de um fundo vazio, que seriam um dos segredos de sua grande arte – como se a arte realizasse a comunhão dos extremos que a política não pode alcançar.

  

Fonte: Veja/Cristovão Tezza em 15/06/2016