ALÉM DO LIMITE DA HONRA
Galeria de grandes personagens de Werner Herzog tem novo integrante: O japonês que passou décadas isolado sem se render após a Segunda Guerra Mundial — Biografia: O autor, o alemão Herzog, um dos cineastas mais badalados do mundo, coleciona histórias sobre personagens sui generis
O Livro: O CREPÚSCULO DO MUNDO, de Werner Herzog. Editora Todavia, 122 páginas
O cineasta alemão Werner Herzog, conhecido por surpreender o público com personagens atípicos, não imaginou a dimensão da surpresa que provocou ao recusar o convite para uma audiência particular com o então imperador do Japão, Akihito, em 1997. Sua sinceridade provocou um pesado silêncio no jantar no qual era homenageado.
— O que eu gostaria mesmo de conhecer é Hiroo Onoda – emendou ele, selando o mal-estar.
Uma semana depois, Herzog se encontrou com Onoda, cuja história inspirou o livro O CREPÚSCULO DO MUNDO, lançado agora no Brasil. Trata-se da fantástica trajetória do tenente japonês Hiroo Onoda (1922-2014), que, em dezembro de 1944, durante a Segunda Guerra Mundial, atendeu a uma ordem de seu superior de jamais se entregar ao inimigo ou mesmo de se suicidar. Onoda e outros três soldados estavam em uma selva nas Filipinas e, mesmo que seus colegas fossem capitulando, ele resistiu, recusando a render-se e quixotescamente não aceitou o final da guerra durante décadas.
— Onoda manteve uma coerência de intensidade quase religiosa – conta Herzog, em entrevista concedida por videochamada.
— Ele não confiava nos panfletos lançados de pequenos aviões, tentando informa-lo de que a guerra havia acabado e ele deveria se render. Isso porque descobria erros que, na sua opinião, revelariam a má intenção daqueles papéis, como um pequeno equívoco na grafia em um dos caracteres japoneses ou a forma errada como era grafado o nome de seu batalhão.
Em 1959, Onoda foi declarado morto no Japão, mas ele persistiu em sua missão até fevereiro de 1974, quando o governo japonês encontrou o oficial que lhe dera as ordens, major Yoshimi Taniguchi, agora um honrado livreiro. Ele rumou par a ilha Lubang nas Filipinas, onde se encontrou com Onoda e ordenou oficialmente que ele depusesse as armas. Trêmulo, o soldado finalmente aceitou o final da guerra, encerrando uma aventura de quase 30 anos.
— Cheguei a pensar em fazer um filme da história, mas logo ficou claro que havia poesia nessa guerra inventada, nesse fascinante jogo em que a verdade é relativa, portanto, teria de ser algo escrito – diz Herzog, que ao longo de sua frutífera carreira como cineasta retratou personagens extraordinários como os exploradores Lope de Aguirre (em AGUIRRE, A CÓLERA DOS DEUSES) e Brian Sweeney Fitzgerald (em FITZCARRALDO), preocupado em mostrar os efeitos mentais e emocionais sofridos por esses homens em situações-limite.
Onoda se encaixa bem nesse perfil: quando voltou ao Japão, ainda em 1974, foi recebido por uma multidão de 8 mil pessoas, aclamação transmitida ao vivo pela televisão. Como o país vivia sua pior crise econômica em 20 anos, a imagem de Onoda chegou a ser usada como exemplo das tradicionais virtudes japonesas, com o bravura, lealdade e orgulho. Mas também serviu como argumento critico aos que o identificavam como a personificação do militarismo.
— Na verdade, ele não era uma pessoa insana – observa Herzog, relembrando o encontro que teve com o ex-militar. — Onoda era prático, fazia observações precisas sobre o que vivenciou naqueles anos e só sobreviveu porque era um bom soldado. Por isso ficou decepcionado com o que se transformou seu país: uma nação consumista.
Fim da Vida no Brasil
Assim, depois de visitar as famílias dos companheiros mortos na guerra, Onoda decidiu se mudar para o Mato Grosso, onde já vivia Tadao, seu irmão mais velho.
— Foi criando gado no Brasil que ele se sentiu um homem seguro – pontua Herzog. — Como escrevo no livro, lá o coração de Onoda batia no ritmo do dos animais, assim como sua respiração acompanha a deles. O meio ambiente pouco desbravado era essencial para a manutenção da sua própria vida, tanto que, ao voltar para o Japão, abriu a Escola da Natureza, estabelecimento privado em que ensinava técnicas de sobrevivência.
As andanças de Onoda fazem total sentido para Herzog, acostumado a trabalhar em inúmeras partes do mundo.
— O mundo se revela para quem viaja a pé – ensina ele, que chegou a escrever um outro livro, CAMINHANDO NO GELO, em que relata sua viagem a pé entre Munique e Paris, na década de 1970 (foram mil quilômetros percorridos durante três semanas com uma bússola, um par de botas e uma bolsa).
O sacrifício era um a homenagem a uma amiga querida, a crítica e escritora Lotte Eisner, que estava gravemente doente.
— Não há muita explicação. Mas, de Juazeiro do Norte às montanhas austríacas, foi assim que moldei minha compreensão do mundo. Já disse isso algumas vezes, mas volto a repetir: meu conselho aos cineastas é andar mil milhas. Vale muito mais do que três anos de escola de cinema.
Fonte: Zero Hora/Caderno DOC/Ubiratan Brasil/Estadão Conteúdo em 22/05/2022