QUANDO O PARANOICO TEM RAZÃO
No livro do Nobel Orhan Pamuk, a política turca é uma sucessão de conspirações absurdas.
O melancólico Ka é um exilado político que não se interessa por política. Poeta de alguma reputação nos restritos círculos de vanguarda de Istambul, ele teve seus dias de esquerdista na juventude, e por causa disso se viu forçado a fugir para a Alemanha. Depois de doze anos de uma vida solitária em Frankfurt, retorna à Turquia natal. Acaba se envolvendo com militantes islâmicos, militares golpistas, espiões da polícia secreta e até um suporto líder terrorista – quando tudo o que desejava era escrever seus poemas e namorar a bela Ipek. Há um paralelo interessante entre Ka, protagonista de Neve (tradução de Luciano Machado; Companhia das Letras; 488 páginas), romance lançado no Brasil em 2006, e seu criador, o romancista turco Orhan Pamuk, , de 54 anos (há época), foi o ganhador do Prêmio Nobel de Literatura daquele ano. Pamuk tampouco é um “escritor político” – mas se viu no meio de uma absurda polêmica ao ser processado por suas declarações sobre o genocídio de armênios promovido pelos otomanos na I Guerra Mundial, episódio que é tabu para os nacionalistas turcos. Mesmo Neve, considerado o mais político de seus livros, está a serviço não da opinião ideológica, mas da imaginação literária. “Neve é, ao mesmo tempo, um romance jornalístico e surrealista. É divertido escrever essas obras que misturam pesquisa e imaginação”, disse Pamuk em entrevista a revista Veja.
O anúncio de que Pamuk seria o primeiro turco a receber um Nobel gerou sentimentos ambivalentes entre seus compatriotas. Muitos comemoraram – o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan, de um partido islâmico moderado, conclamou os turcos a “deixar a polêmica de lado” para congratular o escritor. Ultranacionalistas como o advogado Kemal Kerincsiz, que levantou as acusações contra Pamuk e outros escritores turcos, consideraram a premiação como uma espécie de insulto europeu à alma turca. Filho de uma família de classe média de Istambul – cidade onde reside ainda hoje e à qual dedicou um ensaio autobiográfico, lançado no Brasil em 2007 – o escritor já estudou em universidades americanas e é um grande admirador de autores modernos como o italiano Italo Calvino e o argentino Jorge Luis Borges. Seus livros falam da Turquia (ou do império Otomano em obras de fundo histórico como Meu Nome É Vermelho e O Castelo Branco), mas os puristas o veem como um autor “ocidentalizado”.
A obra de Pamuk retrata a posição intermediária que a Turquia ocupa, geográfica e culturalmente, entre o Ocidente e o Oriente. Fundada em 1923 pelo general Mustafa Kemal, mais conhecido como Ataturk (“pai dos turcos”), a Turquia moderna nasceu como um Estado laico, no modelo europeu. Ataturk instaurou padrões ocidentais com mão-de-ferro: fechou escolas religiosas e proibiu os turbantes, entre outros itens do vestuário e da cultura do antigo Império Otomano. Essas imposições autoritárias geraram ressentimentos e controvérsias persistentes. O lenço que cobre o cabelo das muçulmanas, proibido em escolas e universidades, tornou-se um símbolo do “Islã político” (tema, aliás, central no enredo de Neve). Embora sempre seja citado como um grande exemplo de democracia muçulmana, o parlamentarismo turco tem passado por alguns percalços, com intervenções e golpes militares. Regiões no sudeste do país sofrem com a guerrilha de separatistas curdos (e a resposta do governo não costuma ser gentil).
Os recentes processos criminais movidos contra escritores e jornalistas que se atrevem a mencionar o genocídio de armênios em 1915 arranham a imagem democrática do país. A Turquia, a rigor, ainda não existia nessa época. O massacre foi um dos atos finais do Império Otomano, que se esfacelou na I Guerra Mundial. Mesmo assim, esses crimes são uma mancha sobre a identidade nacional turca. Mais de quarenta autores estão sendo processados e ameaçados de prisão por comentar o assassinato de armênios, ou por outras supostas ofensas à “identidade turca”. Esse atentado oficial contra a liberdade de expressão tem prejudicado o esforço da Turquia para se integrar à União Europeia. As negociações para a entrada dos turcos na EU foram oficialmente abertas no fim de 2004, mas vem andando muito lentamente. Para agravar a situação, a Turquia ainda tem impasses territoriais com a Grécia, Estado-membro da EU, em torno da Ilha de Chipre.
A obra é, sim, um retrato irônico do cipoal de facções políticas que dividem a Turquia contemporânea – estão lá os fundamentalistas islâmicos, os nacionalistas radicais, os separatistas curdos. No centro desse drama político um tanto farsesco, porém, está Ka, um solipsista radical- o tipo de artista que os comunistas da velha guarda costumavam chamar de “alienado”. O poeta exilado retorna à Turquia para assistir ao enterro da mãe, em Istambul. Mas decide também viajar para Kars, na condição de repórter, a fim de cobrir as jovens muçulmanas (cujos motivos, especula-se, estão ligados á proibição do lenço nas escolas). Ka não leva muito a sério suas atribuições jornalísticas: no fundo ele só vai a Kars para reencontrar-se com Ipek, sua paixão da juventude.
Uma nevasca fecha as estradas de acesso à cidade. Aproveitando o isolamento, um delirante ator mambembe chamado Sunay Zaim, apoiado pelos militares, dá uma espécie de golpe municipal, supostamente para impedir que o candidato islâmico vença as eleições para prefeito. Ka torna-se uma peça chave no meio das intrincadas conspirações que agitam Kars. Não por acaso, o apelido Ka (o nome é Kerim Alakusoglu, mas ninguém o chama assim ) evoca os personagens dos pesadelos burocráticos de Franz Kafka. Neve também lembra o universo do americano Thomas Pynchon, com sua aflitiva sucessão de conspirações dentro de conspirações. “Eu gosto desses romances paranoicos, pois a política, na Turquia, é repleta de paranoia. Tudo o que eu preciso fazer para compor meus romances engraçados é copiar a realidade”, diz Pamuk.
Cidade que já ocupou uma estratégica posição fronteiriça entre a Rússia e o Império Otomano, Kars parece congelada no tempo. A história transcorre nos anos 90, mas ainda há carroças nas ruas e as casas de chá onde se reúnem patéticos desempregados curdos exibem obsoletos televisores em preto e branco. Kars às vezes mostra uma inocente face familiar, com suas crianças brincando de trenó nas ruas – mas também pode assumir uma atmosfera opressiva e fantasmagórica (o genocídio promovido pelos otomanos é lembrado discretamente, na imagem das igrejas e casas armênias abandonadas). É um lugar improvável para quem busca Deus, a poesia, a felicidade. O ansioso Ka, no entanto, deseja todas essas dádivas – e até as encontra, só para perde-las em seguida. A neve que dá título ao livro é uma metáfora magistral. Com seus flocos brancos e silenciosos, ela pode representar o amor puro que Ka deseja redescobrir ao lado da misteriosa Ipek. Quando a neve derrete, porém, só resta a lama política.
TURQUIA – NO MEIO DO CAMINHO
Em posição geográfica estratégica entre a Europa e a Ásia, a Turquia negocia desde o fim de 2004 sua entrada na União Europeia. Os muçulmanos são 99% da população, mas o país é governado por um Parlamento secular. Abaixo, alguns dos principais dilemas turcos – e o modo como o Nobel Orhan Pamuk tratou deles.
MUÇULMANA E LAICA
A Turquia é uma nação laica. O lenço com que as muçulmanas cobrem a cabeça pode ser visto nas ruas de Istambul, a maior cidade do país, mas é proibido em escolas e universidades – o que tem gerado conflitos com grupos religiosos.
A palavra de Orhan Pamuk
No romance Neve, o autor mostra uma cidade que se divide violentamente em torno de questões religiosas como o lenço.
O PASSADO MALDITO
O massacre de cristãos armênios promovido pelo Império Otomano durante a I Guerra Mundial até hoje lança sua sombra sobre a Turquia. Um artigo recente do Código Penal proíbe os turcos de falar em genocídio.
A palavra de Orhan Pamuk
O escritor já foi processado por falar do genocídio armênio em uma entrevista.
UMA ETNIA OPRIMIDA
Espalhados pela Turquia, Iraque, Siria e Irã, os curdos não tem uma nação própria. Milícias nacionalistas curdas lutam no sudeste do país, e a repressão do governo costuma ser violenta.
A palavra de Orhan Pamuk
Também em Neve, há várias referências aos nacionalistas curdos – e à crescente proximidade desse movimento com o fundamentalismo islâmico.
ENTREVISTA
Primeiro turco a ganhar o Nobel de Literatura, o escritor Orhan Pamuk falou a Veja sobre sua obra e o seu país, por ocasião da matéria acima (2006).
O senhor foi ameaçado de prisão por falar do genocídio de armênios promovido pela Turquia Otomana na I Guerra Mundial. O processo, porém, foi interrompido no início do ano. O senhor hoje se sente livre para falar sobre o tema?
Sim, mas não tenho vontade de falar sobre isso. A maior punição que o Estado turco poderia impor a mim seria esta: me obrigar a falar só sobre esse tema nas entrevistas, e não sobre meus livros.
O processo diz respeito a um problema que aflige todos os escritores: A liberdade de expressão.
Sim. A Turquia tem problemas com a liberdade de expressão. O país está enredado no artigo penal 301, que perseguiu não só a mim, mas muitos outros autores (o artigo permite caracterizar como crime contra a nacionalidade qualquer referência ao genocídio armênio). A maioria desses casos não resulta em prisão, mas a lei é utilizada por políticos fascistas, da ultradireita nacionalista, na tentativa de intimidar as pessoas.
A crítica vem dizendo que NEVE é seu livro mais político, o senhor concorda?
No limite, tudo é político, e portanto todos os meus livros são políticos, ainda que de uma forma sutil. Neve é o único dos meus romances em que essa dimensão é mais explícita. Mas ele também trata do sentido da vida, da arte, da poesia, das escolhas que fazemos no campo da moral e do amor.
O personagem principal do livro, KA, é um poeta que acaba se envolvendo em polêmicas contra a vontade. É um alter ego seu?
Não diria que ele é um alter ego, mas me identifico, sim, com Ka – e passei a me identificar ainda mais depois do processo contra mim. Ele é um homem dilacerado, dividido, um artista que se torna uma espécie de mediador entre as várias facções políticas turcas, mas ao mesmo tempo vive sob a cobrança de não ser turco o suficiente, de não ser religioso o bastante, de não ser “um de nós”. São cobranças que me fazem também. Sou Ka em certo sentido. Mas sou mais feliz, mais bem sucedido – e mais sorridente.
Ka parece uma espécie de ateu descontente, que gostaria de acreditar em Deus. O senhor também é assim?
Ka precisa de religião, mas não está contente com a religião que lhe é oferecida. Já senti isso também. Ele não simpatiza com as obrigações sociais que acompanham a vida religiosa nem com as ideias islâmicas sobre, por exemplo, o lugar da mulher na sociedade. A religião na Turquia, hoje, é algo comunitário, a ser desfrutado sempre com um grupo de pessoas. O Islã é uma religião social. Ka está mais próximo do intelectual ocidental moderno: uma pessoa solitária que, em seu quarto, isolada, julga os livros que lê e escreve seus próprios poemas.
Outro personagem fascinante do livro é Azul, o líder islâmico que adora a fama. Os fundamentalistas turcos gostam mesmo de aparecer?
Sim. Fundamentalismo é política, e todo político adora a mídia. Os fundamentalistas turcos usam e abusam da mídia. Há uma certa diferença entre o fundamentalismo de um Bin Laden e aquele que encontramos na Turquia. Bin Laden limita-se a jogar bombas e matar pessoas. Os fundamentalistas turcos atuam mais no campo político real, na busca de eleitores. Nesse sentido, são mais modernos.
A secularização na Turquia foi um processo bem sucedido?
O Estado laico da Turquia foi inspirado pela França. Mas, quando os franceses decidiram que o Estado deveria ser laico, não religioso, estavam tentando corrigir uma longa história de conflitos religiosos. A secularização turca, porém, não surgiu de um desejo da população do país. Isso já foi um problema maior. Hoje, o Estado laico já é parte da identidade nacional da Turquia. Alguns turcos se sentem incomodados com isso, mas a maioria assume o estado secular e gosta disso. Não acredito que exista realmente o perigo de algum movimento anti secular ganhar espaço na Turquia.
A polêmica proibição de símbolos islâmicos como o manto sobre a cabeça em escolas e universidades turcas deveria ser suspensa?
Autorizar ou não o lenço cobrindo o cabelo é irrelevante. O fato é que isso nunca deveria ter se convertido em um problema político. Sou crítico da intolerância do Estado turco no que concerne aos lenços, mas também critico o uso político abusivo que os fundamentalistas islâmicos fazem do assunto. É o que mostro em Neve: enquanto os homens fazem política, são as mulheres que sofrem.
A Turquia tem um lugar na União Europeia?
A questão é saber se a Europa deve ser identificada pelo cristianismo ou por igualdade, fraternidade, liberdade – os grandes ideais da Revolução Francesa. Se você acredita nesses ideais, então a Turquia tem, sim, seu lugar na Europa. Se o cristianismo é o que define o europeu, então a União Europeia terá limites mais paroquiais – e a Turquia ficará de fora. Eu acredito que a Europa se revelou atraente para todo o mundo não por causa da religião, mas da modernidade. A modernidade é baseada na liberdade de expressão, na democracia. Uma União Europeia que abrigasse um país de maioria islâmica poderia desenvolver uma grande sociedade, com maior tolerância e entendimento entre seus diferentes povos. Seria um grande exemplo para o mundo. Mostraríamos que não existe um choque de civilizações entre Oriente e Ocidente, que, com respeito aos direitos humanos, as civilizações podem se combinar de forma harmoniosa.
Fonte: Revista Veja/Jerônimo Teixeira
NOTA: A Turquia ainda não é membro da União Europeia = em 2015
Ainda permanece a mesma posição de negação do genocídio.