BÚSSOLA DA FALSA MORAL
“Ser crédulo: isso significa acreditar em nossas próprias mentiras.” Günter Grass (1927-2015).
Ao publicar o romance O Tambor, em 1959, o alemão Günter Grass cutucou uma ferida dolorosa de seu país. A história de Oskar Matzerath – personagem com o corpo de uma criança de 3 anos, mas a mente de um adulto sagaz – iluminava uma verdade difícil para a Alemanha do pós-guerra. Com sarcasmo e lances surreais, Grass mostrou que o mergulho do país no regime de Adolf Hitler não se dera por imposição de uma força maléfica irresistível: suas sementes só se desenvolveram graças ao apoio dos cidadãos comuns. De tão incômodo, o livro foi queimado em cidades alemãs. Autoridades negaram-se a lhe outorgar um prêmio. Dali em diante, ao longo de seis décadas, Grass encarnou com gosto o papel de bússola moral da Alemanha. “A função da literatura é manter feridas abertas”, dizia. Mas ao morrer, no mês de abril, aos 87 anos, de uma infecção pulmonar, ele já não cabia no molde do moralista superior. Sua banca ruiu há nove anos, quando ele mesmo revelou um segredo que manteve trancado no armário por toda a carreira: na juventude, pouco antes da derrota alemã na II Guerra, Grass engrossou as forças da Waffen-SS – braço combatente da tropa de elite nazista que conduziu o Holocausto. Não, ele não serviu em um campo de concentração. Mas também não foi apenas alistado no exército regular – como era inescapável aos alemães de sua geração, do filósofo Jürgen Habermas ao papa Bento XVI. Pertencer à Waffen-SS contava como uma declaração de fé no nazismo. Ironicamente, o próprio autor acabou confirmando as palavras de Oskar Matzerath em O Tambor: “Até o papel de parede tem uma memória melhor que a dos seres humanos”.
A revelação maculou a biografia do escritor, que ganhou o Nobel de 1999 por méritos literários, mas também por ostentar uma credencial cara à Academia sueca: o engajamento à esquerda como pedra de toque da escrita. Grass foi ghost writer do chanceler social democrata Willy Brandt nos anos 60 e chegou a dizer que a falta de liberdade em Cuba era um mal menor perto das supostas vantagens do comunismo. É verdade que ele manejou com destreza o poder de impacto da prosa política em seus primeiros livros – além de O Tambor, convertido em um filme de Volker Schlöndporff em 1979, merecem crédito títulos como Gato e Rato e Anos de Cão. Mas sua insistência em bater na mesma tecla resultou em livros cada vez mais pálidos e repetitivos.
A postura de dono da verdade só amplificou o escândalo da confissão tardia – feita num lance propagandístico, para lançar Nas Peles da Cebola, livro de memórias. Grass construiu a fama apontando o dedo para os pecados de seus compatriotas, enquanto jurava não ter disparado um só tiro na guerra – e também dizia não ter sequer sabido do extermínio de judeus enquanto este estava em curso. Só uma palavra descreve essa atitude: hipocrisia. O historiador Joachim Fest, reputado biógrafo de Hitler, resumiu o caso com uma tirada precisa: disse que nunca compraria um carro usado de Günter Grass.
Fonte: Revista Veja/Marcelo Marthe