LER, LER E DISCUTIR – Detalhe da pintura O RATO DE BIBLIOTECA (1850), de Carl Spitzweg
EM BUSCA DE SENTIDO
Finalmente lançado no Brasil, clássico que aborda a reflexão sobre as obras literárias é erudito e, sobretudo, original
Livro: O SENTIDO DE UM FIM – Estudos Sobre a Teoria da Ficção de Frank Kermode. Ed. Todavia, 208 páginas
As relações entre críticos e artistas nem sempre são afáveis. Claude Debussy surtou: "A crítica não passa de variações sobre o tema: 'Você tem talento e eu não, e isso não pode continuar assim'". Talvez seja a vidraça reclamando do estilingue, mas há hermeneutas com a franqueza de um George Steiner: "Quem seria crítico se pudesse ser autor?". Refletindo sobre essa questão, um clássico contemporâneo da crítica literária, O SENTIDO DE UM FIM, do britânico Frank Kermode, cuja edição original é de 1967, mas foi sucessivamente atualizada pelo autor, acaba de ser publicado no Brasil.
Ironicamente, o título é o mesmo de um fabuloso romance de Julian Barnes, publicado muito depois e que ganhou o Booker Prize de 2011. Barnes comentou: "Bem, nunca tinha ouvido falar da obra de Kermode, e não há direitos autorais nos títulos. Kermode o possuiu durante quase meio século, e agora ele é meu". Achado não é roubado.
O SENTIDO DE UM FIM é uma reflexão brilhante sobre o significado dos finais – na religião, no mito, na ciência, na filosofia e na ficção literária. O autor, que morreu em 2010, ocupou as mais prestigiosas cátedras (Harvard, Columbia, Cambridge) e foi feito cavaleiro pela rainha Elizabeth II. De erudição ímpar, preocupava-se em ser inteligível, exercendo o jornalismo literário nas revistas New Stateman e Spectator e sendo um dos fundadores da respeitadíssima London Review of Books. Realçava a proeminência do deleite na leitura e se comprazia em citar um humorista: "O meu trabalho é dar prazer às pessoas. O dos críticos é tentar me impedir".
O foco de O SENTIDO DE UM FIM é o tempo – que, retilíneo ou cíclico, não para, e também muda literariamente. Kermode é aparentemente modesto: "Não se espera dos críticos, como se espera dos poetas, que nos ajudem a dar sentido à nossa vida: os críticos estão fadados apenas a tentar a façanha menor de dar sentido às maneiras como tentamos dar sentido à nossa vida". Modéstia que contrasta com o desconstrucionismo (hoje demolido), que tira a autoridade do autor. Como observou Susan Sontag (melhor crítica do que ficcionistas), "a interpretação é a vingança do intelecto sobre a arte".
Kermode não poupa ferramentas: "Uma época, notou Einstein, são os instrumentos de sua investigação. A física estoica, a tipologia bíblica, a teoria quântica são todas diferentes, mas todas se valem de ficções. Em algumas situações, não conseguimos distinguir entre fato e nosso conhecimento do fato – as proposições podem até ser verdadeiras e falsas ao mesmo tempo. Mas, se existe ou não um princípio que se aplica a ondas e partículas, amor e justiça, prazer e análise, consciente e inconsciente, um dos grandes encantos dos romances é que eles têm de acabar. Mas, a menos que sejamos ingênuos, não pedimos que avancem rumo a esse fim precisamente como nos foi dado acreditar". Por outras palavras, me engana que eu gosto.
A literatura joga com o tempo, e o ficcionista é um Deus não apenas onipotente como pré-big-bang, quando o tempo não existia. O autor todo-poderoso conhece o passado, o presente e o futuro da sua narrativa – coisa que nem os personagens nem o leitor sabem nem podem adivinhar, e sim só conjecturar, de preferência equivocadamente. Hoje, os próprios cientistas consideram o tempo relativo, e não um absoluto. De qualquer forma, como notou o matemático Hermann Minkowski, "ninguém jamais percebeu um lugar a não ser num tempo".
Os gregos distinguiam três tipos de tempo. Cronos é o tempo físico, que pode ser medido, com um princípio e um fim (que Kermode chama de "o tique-taque", o intervalo entre o tique do nascimento e o taque da morte). Kairós é um tempo metafísico em que algo especial acontece, o momento crítico, que cria um "antes" e um "depois". Já Aíôn é o tempo sagrado e eterno, cíclico e imensurável – um termo usado na geologia e cosmologia para representar o período de 1 bilhão de anos, a escala de tempo na história da Terra.
Ora, a ficção literária engasga o Kairós no cronos: um momento marcante que brota na rotina repetitiva e muda para sempre a vida do protagonista. Por isso, ficção é ficção, e toda narrativa encena uma crise, uma turbulência, um a instabilidade – não necessariamente adversa, que não pode ser ignorada. Por isso, os autores têm uma história para contar. Como diz Tolstoi na abertura de Anna Karenina: "Todas as famílias felizes são iguais, mas toda família infeliz é infeliz do seu próprio jeito". Se a teoria lida com abstrações generalizáveis, a literatura lida com individualidades irredutíveis.
Daí, conclui Kermode, "entre todas as outras ficções, as literárias têm seu lugar. Descobrem, para nosso bem, algo sobre a mudança: organizam nossas complementariedades. Talvez façam isso melhor que a história e a teologia, sobretudo porque temos consciência de que são falsas. A ficção do fim é como o infinito mais um e os números imaginários da matemática – sabemos que não existe, mas nos ajuda a dar sentido ao mundo e a nos mover dentro dele".
Fonte: Jornal Zero Hora/caderno DOC/Paulo Nogueira/Estadão Conteúdo em 05/03/2023