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Um de Nós, de Asne Seierstad
Um de Nós, de Asne Seierstad

A MONSTRUOSIDADE HUMANA

 

Em UM DE NÓS, Asne Seierstad enfrenta o desafio de mergulhar na mente de um assassino em massa e mostrar o que o diferencia – e o aproxima – do resto da humanidade.

 

Alguns imploraram por sua vida.

- Por favor, não atire!

Mas ele sempre atirou.

Uma menina foi baleada em meio a um grito. A pistola quase encostou no rosto dela, ele atirou dentro da boca aberta. O crânio foi despedaçado, mas os lábios se mantiveram intactos.”

 

É assim, com detalhes excruciante, que Äsne Seierstad descreve, no recém-lançado UM DE NÓS, como o norueguês Anders Breivik executou 69 pessoas, na maioria adolescentes, durante um encontro da juventude trabalhista na Ilha de Utoya, em Oslo, em 22 de julho de 2011. O livro é igualmente minucioso na explicação de como Breivik fabricou a bomba de fertilizantes detonada mais cedo no mesmo dia diante do escritório do então primeiro-ministro Jens Stoltenberg, matando oito pessoas, e na reconstituição da sequência de erros cometidos pelas forças de segurança – e que facilitaram muito o massacre. A primeira patrulha policial a chegar ao cais que dava acesso de barco a Utoya, por exemplo, ficou na margem sem fazer nada, porque tinha ordens para aguardar e observar, apesar de ser evidente pelos tiros espaçados que se escutavam a apenas 600 metros de distância que se tratava de um atirador solitário. Enquanto isso, Breivik matava uma criança por minuto, em média, muitas com tiros na nuca, enquanto a vítima tentava fugir.

 

UM DE NÓS, porém, é muito mais do que o relato de um massacre. O espetacular trabalho de reportagem de Äsne, jornalista norueguesa conhecida no Brasil pelo best—seller O LIVREIRO DE CABUL, de 2002, propõe-se a esclarecer a pergunta feita a Breivik no interrogatório a que foi submetido após ser preso e que durante os treze meses seguintes, até sua condenação a 21 anos de prisão por terrorismo atormentou o pais: por quê?

 

Que o assassino de 32 anos era um extremista de direita obcecado pelo que considerava ser um processo de islamização de sua pátria ficou claro tão logo se teve acesso ao verborrágico manifesto que ele tinha publicado on-line. Mas por que havia recorrido ao métodos de grupos terroristas islâmicos como a Al Qaeda, que ele abominava, igualando-se a eles? Por que o maior atentado da Noruega foi cometido por um norueguês? E por que nem a visão de conterrâneos púberes pedindo clemência foi capaz de demovê-lo daquele crime bárbaro? Uma coisa, observou um dos muitos psicólogos que o analisaram para a elaboração dos relatórios usados no tribunal, era plantar uma bomba no centro de Oslo e sair correndo, sem ver os efeitos do estrago. Outra, muito diferente, era matar dezenas de adolescentes, um por um, muitos à queima-roupa, sem titubear, sem enojar-se com os próprios atos.

 

Um monstro, um louco. Só essas classificações poderiam explicar tanta frieza, tanta crueldade e a total falta de empatia com outra pessoa. Também serviam de conforto psicológico para outros cidadãos. É mais fácil desumanizar o assassino para não correr o risco de se reconhecer nele de alguma forma. Ao dissecar o passado de Breivik, a autora desmonta essa ilusão e expõe o incômodo fato de que ele não é um monstro. É humano, com tudo o que pode haver de monstruoso nisso. A infância solitária, a mãe problemática, o pai ausente, o bullying sofrido na adolescência, o vício em jogos de computador violentos, o narcisismo, o uso de anabolizantes e até a admiração juvenil de Breivik pelos imigrantes, que depois se transmutou no oposto, em xenofobia – Äsne apresenta tudo isso sem cair na tentação de dizer que um ou outro fator explica seus crimes. Ela faz melhor: desvenda como um cidadão medíocre se torna um extremista e como, a partir daí, é frágil a barreira que o separa de cometer atrocidades indizíveis. Trata-se de um processo comum a terrorista de todo tipo, inclusive os islâmicos que Breivik dizia combater.

 

LIVRO: UM DE NÓS, de Äsne Selerstad (tradução de Kristin Lie Garrubo; Record; 560 páginas).

 

Fonte: Revista VEJA/Diogo Shelp em 11/05/2016.