CASAMENTO DESTROÇADO SEGUNDO ELENA FERRANTE
Elena Ferrante é o pseudônimo de uma escritora italiana que tem sido considerada, inclusive pelo New York Times, como detentora de uma das mais fortes e belas prosas contemporâneas. Sucesso de público e de crítica, a autora que teria nascido em Nápoles há uns 60 anos, raramente concede entrevistas e, quando o faz, é via e-mail. Ninguém sabe ao certo se é homem ou mulher. O que todo mundo sabe é que ela escreve bem, muito bem.
A crítica literária Isabel Lucas e o editor Francisco Vale, portugueses, comparam Elena a Clarice Lispector, pelos temas e estilo, despojados e irônicos, e, principalmente, pela introspecção e pelo modo como Clarice explorava o psicológico dos personagens. Elena mergulha fundo na consciência dos personagens e, com força gigante de sua narrativa, se recusa a utilizar artificialismos de linguagem.
DIAS DE ABANDONO (Globo, 184 páginas, tradução de Francesca Cricelli), há poucos dias lançado no Brasil, vem na sequência dos romances A AMIGA GENIAL e HISTÓRIA DO NOVO SOBRENOME que a Editora Globo já publicou entre nós e que fazem parte da famosa tetralogia napolitana da autora, que conta ainda com HISTÓRIA DE QUEM FOGE E DE QUEM FICA e HISTÓRIA DA MENINA PERDIDA.
DIAS DE ABANDONO inicia assim: “Uma tarde de abril, logo após o almoço, meu marido me comunicou que queria me deixar”. A partir daí, a narrativa dura e angustiante vai revelando que a banalidade da vida tem um tom extraordinário. Os destroços de um casamento vão aparecendo com força, brutalidade e complexidade avassaladoras. A narradora Olga oi abandonada pelo companheiro de 15 anos, que a trocou por outra. Olga ficou com dois filhos e um cão, num apartamento de Turim. Ela vai tentar, desesperadamente, permanecer sã. E imagina: “A minha tarefa, eu pensava, é mostrar que é possível permanecer sã. Demonstrá-lo a mim mesma, a mais ninguém. Se for exposta aos lagartos, combaterei lagartos. Se for exposta às formigas, combaterei formigas. Se for exposta aos ladrões, combaterei ladrões. Se for exposta a mim mesma, combaterei a mim”.
Ela não tem vontade de nada, mas sabe que precisa lutar, tem dois filhos, uma casa para tocar e um cachorro que só dá trabalho. Olga, mesmo exausta, precisa enfrentar o sentimento de perda de equilíbrio, de traição, rejeição e o livro, mesmo narrado em primeira pessoa, caracteriza bem todos os personagens.
A obra não pode deixar de ser vista, por sua temática, como um microcosmo que talvez contenha uma parábola da libertação feminina na sociedade atual: redentora, mas não sem angústias.
Fonte: Jornal do Comércio/Jaime Cimenti (jcimenti@terra.com.br) em 14/8/2016.