GULLIVER E A INVENÇÃO DOS EMOJIS!
O LIVRO DA MINHA VIDA
Seguindo a série do Livro da Minha Vida, Lenio Streck trata de AS VIAGENS DE GULLIVER, de Swift.
Fui encarregado de escrever um breve texto tecendo algumas reflexões sobre algum livro que tivesse me marcado. Tarefa árdua, dificílima. Hercúlea. Penso, inclusive, que os doze trabalhos de Hércules eram, originalmente, treze; o décimo terceiro era, justamente, o de escolher, dentre tantos, apenas u livro. Ao que parece, contudo, o Oráculo foi piedoso e incumbiu, ao filho de Zeus, tarefas bem mais simples, como derrotar o Leão de Nemeia e a Hidra de Lerna.
De fato, minha tarefa é árdua. Chego a invejar Prometeu, Atlas, Loki e Sísifo. Meu trabalho é bem mais difícil. Afinal, em um universo com Shakespeare e Cervantes, Orwel e Golding, Machado e Graciliano Ramos, como escolher um só? Bem, que seja. Ao trabalho, pois.
Escolhi AS VIAGENS DE GULLIVER, de Jonathan Swift. Por quê? Bem, George Orwell, o autor inglês, explicaria melhor que eu mesmo. Porque, nas palavras dele (na melhor crítica já escrita sobre a obra), o livro de Swift é um “ataque à humanidade”, capaz de mostrar ao homem toda sua fraqueza. Somos fracos. Mortais. Ridículos. Precisamos ter isso sempre em mente. Não é por menos que os generais romanos tinham sempre, à sua volta, escravos encarregados de lembrá-los de que eram mortais.
Se somos mortais, somos falíveis. E assim o é nossa capacidade de articular o sentido das coisas.
Como sabem, sou jurista. Por isso, logo vem-me à mente mais uma lembrança de Swift e seu ensinamento subjacente, sobre os perigos de uma aplicação mecânica das leis. A certa altura, na fictícia Lilliput, Gulliver descobre que a câmara da Imperatriz, no Palácio da cidade, está em chamas. “Fogo!”, gritam os cidadãos. Gulliver, rapidamente decide urinar no fogo, apagando-o e impedindo que as chamas se alastrassem ao resto do Palácio. Orgulhoso, satisfeito com sua estratégia, o Capitão Lemuel Gulliver tem sua felicidade interrompida: em vez de ser reconhecido por ter salvado a Imperatriz, é acusado pelo terrível crime de… urinar no Palácio. Em uma metáfora, em um capítulo, Swift constrói uma crítica arrasadora às instituições que segue atualíssima.
“É proibido urinar no Palácio”, provavelmente é que diziam os códigos de Lilliput. “Mas eu salvei a Imperatriz!”. Ora, nada de “mas”. A solução é essa. Já temos a resposta antes das perguntas. Ouso dizer, ainda, que, no Brasil de 2017, haveria uma campanha no Facebook. “Amarrem esse marginal a um poste”. Afinal, agora, ao que parece, devemos ter medo da justiça.
Pois bem. Eis aí o perigo de se pensar que as palavras têm o poder de aprisionar e antecipar, em si, todo o sentido do mundo. Essa, pois, é outra lembrança incômoda para a qual Swift, através do capitão Gulliver, insiste em alertar-nos: não há respostas antes das perguntas.
É em Lagado, capital da nação de Balnibardi, que Gulliver encontra a Academia de Projetistas. Entre seus diversos projetos, destaco, aqui, uma de suas salas, na qual os sábios locais discutiam as possibilidades de se simplificar a linguagem. Era um consenso em Balnibardi que o discurso, além de complexo, fazia mal à saúde – afinal, o simples ato de falar poderia, a longo prazo, trazer malefícios aos pulmões e, consequentemente, diminuir a expectativa de vida da população.
Trabalhando a partir dessa lógica, um dos professores sugeria que todas as palavras, especialmente as longas, fossem suprimidas, de forma que comunicassemo-nos apenas através de sílabas. A solução não agradou a todos: outro acadêmico de Lagado sugeria que a empreitada fosse mais além, abolindo as palavras de uma vez por todas. Em vez de palavras, que usássemos… objetos. Se eu pretendo falar de uma caneta, diz o professor, por que não mostrar uma caneta?
Ora, arrisco-me a dizer que Swift já antecipava, na Academia de Lagado, os emojis. Ou as redes de televisão, subestimando nossa inteligência, que, para falar sobre um campo de futebol, mostram… um campo de futebol. Uau. Genial.
Na verdade, bem lendo, Swift já previa que sem linguagem não há mundo. E que menos linguagem, menos mundo. Por isso a ironia com a transformação de frases em sinais ou monossílabos. Hoje, com o Facebook e WhatsApp, estamos emburrecendo. Já não telefonamos nem escrevemos. Usamos emojis. Fracassamos. Que livro esse de Swift, escrito em 1726! mas é como se fosse escrito hoje.
Ora, não podemos aprisionar o mundo e sua completude em nossas palavras. Sinto muito, mas Swift tinha razão: estamos condenados a angustiar-nos com as contingências. É por isso que, para este texto, escolhi celebrar AS VIAGENS DE GULLIVER. Porque Swift, em sua modernidade, percebeu aquilo que alguns ainda recusam-se a reconhecer: a de que um mapa não é o mundo, porque se um mapa fosse o mundo… Já não seria mais um mapa. E nós? Somos fracos. Mortais. Ridículos.
Fonte: Correio do Povo/CS/Lenio Luiz Streck/Professor titular da Unisinos; Âncora do programa Direito & Literatura da TV Justiça; Advogado, membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Em 03/02/2018.