SHORT MOVIES
Novo livro do escritor português Gonçalo M. Tavares. Um dos grandes nomes da literatura lusitana contemporânea, Tavares é um prolífico autor de livros de personalidades e feições bem diversas. O autor já escreveu poesia, contos, romances e obras que transitam de modo fluido entre os gêneros. São dele os densos romances alegóricos cheios de personagens que se entrecruzam em uma atmosfera de pesadelo, como a série O REINO, composta de quatro romances, entre eles o premiado JERUSALÉM, vencedor do Portugal Telecom. Tavares também é autor da sua série O BAIRRO, em que personagens como os senhores Henri ou Valéry encarnam conceitos abstratos em contos curtos interligados. Neste SHORT MOVIES, Tavares transforma cenas estáticas em contos que mesclam o cotidiano e o absurdo capturados por uma prosa que simula a câmera desconcertante de filmes clássicos do leste europeu. O livro está ganhando edição no Brasil pela editora gaúcha Dublinense, e estará nas livrarias no início de setembro:
O PIANO
Um piano com as teclas partidas, rodeado de água, talvez num pequeno lago. O dono do piano chega até ele, com água pelos tornozelos.
A mulher e os filhos morreram na catástrofe, mas agora ele localizou o piano que, com o desabamento da casa, desaparecera.
Chegado ao pé do piano, o homem toca numa tecla quase por instinto, para ver se ainda funciona. Há muito barulho na cidade, há sirenes de ambulância por todo o lado e por isso ele não tem a certeza se o que ouviu foi resultado do seu toque no piano. Mas o piano está de tal forma desfeito que é impossível alguma tecla ainda funcionar.
De qualquer forma, o homem – que acabou de perder a mulher e os filhos - terá perdido também por completo a razão ou então terá ganhado uma outra forma de olhar para o que lhe acontece; e isto porque, em pleno alvoroço, na altura em que há mortos por todo o lado, e no momento em que cada um procura encontrar os seus familiares e confirmar se eles ainda estão vivos, é nessa altura que esse homem subitamente grita – e pede ajuda.
Mas naquele momento ninguém o vai ajudar a resgatar um piano.
A MÁSCARA
Um homem com uma máscara de gás na cara. O rosto disforme. Como se fosse um monstro. Ele faz depois os gestos de um chimpanzé. Põe as mãos curvadas e simula os pequenos saltos e movimentos do chimpanzé. O plano abre-se. Vemos para quem ele está a fazer aquilo. É para uma mulher. Uma mulher muito velha. Moribunda; ligada a várias máquinas e com soro a entrar no braço. Mesmo assim, a velha mulher sorri, primeiro; depois ri, ri muito, não consegue parar de rir. Só a vemos rir, como se tivesse perdido o controle.
A LOUCA
Um fotógrafo tira fotografias a uma louca. O fotógrafo diz que nem o melhor actor consegue ter a expressividade do rosto de uma louca. E por isso não para. Mesmo quando a louca diz não com a cabeça, não com a boca e, por fim, não com o dedo.
A FOTOGRAFIA
1.
Uma mulher gordíssima experimenta roupa que lhe fica muito mal – está muito apertada.
Um homem com uma máquina fotográfica pede, primeiro, para ela se virar na direção dele; depois aproxima-se e dá-lhe duas estaladas no mesmo lado da cara.
A mulher gordíssima está quase a chorar, apesar de os estalos terem sido dados sem qualquer envolvimento – como se o homem estivesse apenas a ajustar o cenário.
O homem afasta-se um metro, volta depois a aproximar-se e dá-lhe mais um estalo, no mesmo lado da face. Depois sim, afasta-se mesmo e, a cerca de quatro metros dela, baixa-se ligeiramente e põe a máquina fotográfica à frente do olho. Prepara-se para tirar a fotografia. Diz: por favor, agora não se mexa.
2.
Vários homens e mulheres bem vestidos estão em cima de caixotes para espreitarem para o outro lado de um muro.
Não vemos o que eles veem. Estão em silêncio.
Uma mulher murmura, enquanto abana a cabeça; três estalos. Estúpido – diz ainda, para si própria.
- Está a bater nela.
Depois roda de novo a cabeça para o sitio certo e, como todos os outros, luta delicadamente pelo melhor posto de observação.
Fonte: ZeroHora/Caderno PrOA de 30/08/2015