OS AMORES DE DA VINCI
Crianças são mais vulneráveis do que nós adultos que, mesmo em posição subalterna, podemos rechaçar o assédio indesejado.
“Ladrão, mentiroso, obstinado, ganancioso”, escreve Leonardo Da Vinci no seu caderno de anotações sobre o garoto com quem teria a relação mais duradoura de sua vida: Gian Giacomo Caprotti. O ano da nota? 1491. Caprotti tinha dez anos quando foi trabalhar no ateliê do pintor. Menino pobre de extraordinária beleza, começou como servente. Mais tarde, Leonardo o usou como modelo para o seu São João Batista.
Quando Leonardo o conheceu, o menino costumava roubar portaníqueis, canetas de prata e qualquer outra coisa em que pudesse pôr as mãos. Por isso, Leonardo lhe deu o apelido de Salaì. O dicionário hebraico-português diz que o nome significa “o que recusa”. Como Lúcifer recusou Deus, é possível interpretar o apelido como “o demônio” ou “pequeno imundo”. Passando a pintar, Caprotti assinou seus trabalhos como Andrea Salaì.
Os biógrafos de Da Vinci afirmam que Leonardo e Salaì se tornaram amantes quando Salaì entrava na adolescência e que ficaram juntos durante 28 anos.
Bem antes disso, em 1476, acusado por fazer sexo com o aprendiz de um ourives local, Da Vinci tinha sido preso. Passou pouco tempo na prisão e se safou das possíveis penas legais – multa, exílio ou fogueira – por falta de testemunhas. Quando se viu livre, mudou-se para Pistoia e alguns anos depois para Milão, a convite do Duque Ludovico Sforza. Na corte do Duque de Milão, Leonardo parecia feliz, vestido em cetins e veludos de tons de rosa e lilás, as mãos perfumadas com lavanda, e uma rica clientela para seus quadros.
Ainda em Milão, além de Salaì, Da Vinci contratou outro menino bonito, Francesco Melzi, quer era o oposto do primeiro: aristocrático, sério, dedicado. Quando Da Vinci morreu, Melzi herdou a maior parte dos bens do pintor. Selaì herdou metade da propriedade em Milão. Um historiador comenta que, aparentemente, Salaì recebeu uma parte pequena da herança porque Da Vinci já tinha cuidado bem das fianças daquele que foi o grande amor de sua vida.
É sobre esse amor e o triângulo Leonardo-Salaì-Melzi, que Mário Cláudio escreveu uma bela novela: RETRATO DE RAPAZ (Don Quixote). O autor, um dos mais importantes escritores portugueses da atualidade, é o pseudônimo de Rui Manuel Pinto Barbot Costa, que ganhou uma dezena de prêmios – entre eles, o Pessoa e o D. Diniz.
Mário Cláudio escreveu diversas narrativas, em que artistas aparecem como personagens, e se explicou numa entrevista. “Quando vejo uma figura biografável, sinto que, de alguma forma, essa figura me chamou. É mais uma possessão de uma figura que exige que eu a biografe do que propriamente uma busca minha. São figuras que têm alguma coisa a ver comigo, mesmo que a afinidade se manifeste por um lado mais negativo. A única coisa que depois respeito é a cronologia. Faço uma psicobiografia, uma incursão pela personalidade da pessoa, pelas atmosferas a que esteve ligada, muito mais que pelos fatos verificáveis”.
Há uma superposição de planos na obra de Mário Cláudio. Diz ele: “Vejo a escrita como uma espécie de palimpsesto, um texto escrito sobre outro texto que já existe, mas que não é imediatamente visível”. E, assim, nas suas quase-biografias, Mário Cláudio junta sua invenção ao fatual preexistente.
Entre os “psicobiografados” estão Eça de Queirós em AS BATALHAS DO CAIA, Goya em GÊMEOS, o pintor Amadeo de Souza-Cardoso em AMADEO, a violoncelista Guilherina Suggia em GUILHERMINA, a ceramista Rosa Ramalha em ROSA, Da Vinci em RETRATO DE RAPAZ e Fernando Pessoa em BOA NOITE, SENHOR SOARES.
Em BOA NOITE, SENHOR SOARES (Editora 7 Letras), Mário Cláudio cria um narrador, Antônio da Silva Felício, empregado do escritório de Vasques e colega do senhor Soares. Está montado o cenário do LIVRO DO DESASSOSSEGO, obra do heterônimo de Pessoa, Rodrigo Soares. A descrição de Soares, feita por Mário Cláudio, corresponde aos retratos que conhecemos de Pessoa, com alguns traços discrepantes. Soares tem uma irmã, Henriqueta Madalena, irmã real de Pessoa. Seus amigos são dois de seus heterônimos, Ricardo Reis e Vicente Guedes. Ele tem uma arca repleta de manuscritos e morre em novembro, como Pessoa.
Regina Silva Michelli, professora-adjunta de literatura portuguesa na UFRJ, escreve que, o senhor Soares aparece como um espectro em diferentes momentos da vida de Antônio, o narrador de BOA NOITE: no caminho de retorno à casa da irmã depois de uma comemoração, ou num domingo em piquenique da família… No cais, Antônio vê três personagens: o senhor Soares, um jovem estivador e um cavalheiro estrangeirado “dos que suscitam o piscar de olhos dos moços de frete”, numa referência ao “Poema em Linha Reta”, de Álvaro de Campos. Anos depois, o narrador continua a ver o senhor Soares “deslocando-se entre aquela gente que já morreu”.
Interessante que Fernando Pessoa também aparece como fantasma nas obras de dois outros grandes escritores: José Saramago e Antônio Tabucchi.
Em O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS, Saramago cria um diálogo de Pessoa com seu alter ego, Ricardo Reis. Saramago imagina a morte do heterônimo em 1936 (que corresponde ao ano da ascensão de Salazar em Portugal) e inventa situações que colocam em xeque a filosofia cética do poeta. Ao voltar do exílio no Brasil, Reis percebe que não é fácil manter-se indiferente e repetir como antes: “Sábio é aquele que se contenta com o espetáculo do mundo”.
E Tabucchi, em RÉQUIEM: UMA ALUCINAÇÃO, mostra o fantasma de Fernando Pessoa assombrando o narrador, que questiona a própria identidade.
Comecei esta coluna falando dos amores de Leonardo Da Vinci e me desviei para tratar do autor de RETRATO DE RAPAZ e suas quase-biografias. Quero voltar à possibilidade do amor numa relação desigual e controversa. Não está em discussão o comportamento do predador pedófilo, mas o envolvimento duradouro de um adolescente com um adulto.
Em épocas passadas, o casamento de meninas com menos de 14 anos era comum e bem aceito, enquanto se condenava a relação (mesmo que duradoura) entre o homem mais velho e um adolescente do mesmo sexo (deixo de lado a Grécia antiga). Na Florença renascentista de Leonardo Da Vinci, caixas colocadas em diferentes locais da cidade permitiam ao cidadão fazer denúncias anônimas de “crimes morais” na tentativa de controlar a sodomia.
Hoje persiste a distinção entre o sexo de meninas e meninos. O casamento de meninas adolescentes continua a ser comum e reconhecido em países pobres da Ásia e da África. No Brasil, quase 1% dos bebês são filhos de meninas entre dez e 14 anos. Com certeza, a lei proíbe o casamento de menores e organizações multinacionais se esforçam em banir o casamento infantil, que prejudica as chances de bem-estar de adolescentes. A menina que se casa antes de ser maior de idade tem duas vezes mais chances de viver na pobreza e três vezes mais chances de ser espancada pelo marido do que a mulher que se casa adulta. É mais propensa a sofrer de problemas de saúde mental, provavelmente abandonará a escola e costuma descrever sua primeira experiência sexual como forçada. Devido à diferença de idade com o companheiro e à dinâmica de poder, ela terá dificuldade em afirmar seus desejos e negociar o sexo consensual. (www.girlsnotbrides.org/about-child-marriage).
As estatísticas para os meninos que experimentam o sexo com um homem mais velho são menos abrangentes. Mesmo assim, presume-se que as desvantagens para os meninos se assemelhem àquelas constatadas para as meninas. A desigualdade de poder entre o homem mais velho e o adolescente faz com que um garoto tenha dificuldade em entender e afirmar os próprios desejos.
Esse quadro de desvantagens representa o que acontece, em média. Mas não corresponde à história entre Da Vinci e Salaì, contada por Mário Cláudio. Na literatura, vale tudo. Na vida, o buraco é mais em baixo. Crianças são mais vulneráveis do que nós adultos que, mesmo em posição subalterna, podemos rechaçar o assédio indesejado.
Fonte; Revista Valor/Eliana Cardoso (economista e escritora / eliana.anastasia@gmail.com em 23/02/2018.