MULHERES ATRÁS DO PAPEL
O aprisionamento do desejo da mulher a condenava à reclusão e, muitas vezes, a porta de saída só podia se manifestar como loucura
Se nos perguntarmos por que a histeria estudada (e confinada) por Charcot no hospital da Salpêtrière no século XIX começou a desaparecer no século XX, a resposta mais óbvia talvez seja a mudança do papel da mulher na sociedade. Uma mudança ainda em curso – e cada vez mais visível graças aos atuais movimentos feministas –, que aponta para um mundo novo, em que os desejos dos homens e os desejos das mulheres têm o mesmo direito de existência.
A construção subjetiva passa pelo desejo e pela sua possibilidade de exteriorização. No século XIX, e antes dele, os desejos das mulheres ficavam presos nelas mesmas. Por isso, muitas vezes explodiam em seus corpos, manifestando-se, por exemplo, como paralisia ou ataques histéricos. O que elas precisavam reprimir para viver em sociedade se manifestava fisicamente. O desejo falava mais alto, sobrepunha-se às imposições sociais, mas acabava sempre confinado, num hospital ou num quarto. Suas donas, chamadas de loucas, histéricas, doentes dos nervos.
É dessa mulher, vista como louca pelo simples fato de desejar, que fala O PAPEL DE PAREDE AMARELO (José Olympio), conto de Charlotte Perkins Gilman, publicado pela primeira vez em 1892, hoje um clássico da literatura feminista (e não só). Charlotte e sua irmã foram criadas apenas pela mãe, que foi abandonada pelo marido. Para ela, tampouco, o casamento seria uma boa experiência. Um ano após se casar, Charlotte deu à luz uma filha e, um mês depois, tornou-se “uma pilha de nervos”. Ela se sentia aprisionada pelo papel atribuído à mulher dentro do casamento convencional do século XIX. Esse aprisionamento gerava nela “um cansaço constante e desanimador (…) Incapacidade total. Angústia total.”
A literatura está repleta de exemplos de mulheres paralisadas, cansadas, angustiadas, desanimadas, sem cor, sem viço. Mulheres confinadas ao papel que deveriam atuar na sociedade. Mulheres confinadas ao papel de parede que, no conto de Charlotte, tem muitos significados.
A narradora da história instala-se numa propriedade antiga durante o verão, junto com seu marido, John, que é médico. Ela sofre de “uma depressão nervosa passageira – uma ligeira propensão à histeria”. Ele, toda vez que ela parece fugir do eixo, ri da esposa. “Mas isso é de se esperar no casamento”, afirma a narradora que, ao mesmo tempo em que mergulha na loucura, torna-se mais ciente de sua condição. Ela sabe que, para seguir seu desejo, a mulher daquela época também precisava seguir a insensatez.
Tendo em vista que a construção da subjetividade é a afirmação do desejo, não há alternativa para a narradora: ou ela desenvolve uma subjetividade louca, ou não desenvolve subjetividade nenhuma. Sua pequena loucura esbarra constantemente naquilo que o marido e os outros pensam dela. Com eles, não há interlocução. Por isso, ela escreve um diário, e dialoga com um leitor hipotético. No entanto, escreve contra a prescrição do médico: “estou absolutamente proibida de ‘trabalhar’ até me restabelecer”, diz ela. A certa altura, quando recebe a visita da cunhada, a narradora comenta: “Não tenho dúvidas de que ela pensa que foi a escrita que me deixou doente!”
O conto é extremamente autobiográfico. Charlotte foi enviada para o “especialista em nervos” mais renomado de sua época, o dr. S. Weir Mitchell, da Filadélfia. Ao que tudo indica, foi o tratamento paternalista dispensado por ele que a inspirou a escrever o conto. Mitchell, como o médico de O PAPEL DE PAREDE AMARELO, limita ao máximo de duas horas por dia sua atividade intelectual. E acrescenta: “nunca toque uma caneta, lápis ou pincel enquanto viver”. Vejam quanto poder tem a arte na construção do sujeito. O médico não quer que ela escreva ou pinte porque sabe que essas atividades estimulam o desejo e sua expressão. Tantas vezes associamos a arte à loucura, justamente por ela se mostrar como um provável caminho de dissolução dos limites e das convenções.
Antes que eu canse os leitores desta coluna com as ideias feministas de Charlotte Perkins Gilman, às quais ainda voltarei, é preciso dizer: sua narrativa tem muitas camadas e uma precisão dramática e psicológica que valeria, se é que podemos dissociar forma e conteúdo, apenas pela sua estética. A forma como ela nos conduz à loucura da personagem é espiralar. Vamos dando “voltas no parafuso” junto com a narradora. E, sim, faz-nos pensar nas histórias assustadoras de Henry James, Maupassant ou Allan Poe. Também seu conto é aterrorizante, não pela presença de fantasmas, mas por mergulhar na cabeça da personagem. E as cabeças humanas são a maior fonte de terror.
A pequena loucura do início do conto é justificada pelo leve grau de histeria. Aos poucos, o descanso na casa de verão vai estimulando a imaginação da personagem, levando-a para realidades subjetivas que os outros desconhecem. E arrastando os leitores junto com ela. Não é sempre que a literatura nos leva com tanto afinco para os delírios de alguém.
Poderia ser qualquer coisa. Poderia ser, como afirma John, a pesada armação da cama, ou as janelas gradeadas, ou o portão no topo da escada e assim por diante. Mas é o papel de parede amarelo, rasgado, gasto - “nunca na vida vi um papel tão feio” – que desencadeia a imaginação da narradora. Ela e o marido se instalam no quarto superior, um antigo quarto infantil, onde talvez funcionasse uma creche. As crianças devem ter tentado arrancar o papel com força, daí seu estado lastimável. A narradora passa os dias e as noites no quarto e a cada dia delira mais sobre as formas que vê no e atrás do papel.
Ela não quer ir embora da casa sem antes decifrar o padrão. A certa altura, começa a ver mulheres rastejantes, até que pergunta: “Fico imaginando: e se todas saírem do papel de parede como eu saí?” A narradora sai do papel porque se liberta na imaginação e na escrita, ou no delírio. Mas, ao contrário da autora, que vivia de seu trabalho e defendia a causa feminista abertamente, está confinada à casa, ao quarto, à cama que não se mexe – “acho que está pregada”.
Na apresentação ao conto, Marcia Tiburi afirma: “Incluída no cosmos opressivo do lar para ser excluída da vida pública, à mulher resta viver confusões internas que podem levar à loucura”. A casa fechada corresponde ao mundo opressor. Os limites externos são muitos. Portanto, a experiência de liberdade só pode acontecer internamente, num espaço físico muito pequeno. Enquanto a mulher não fosse independente do ponto de vista financeiro (tese defendida por Charlotte Gilman em “Women and Economics” e por Virginia Woolf em “Um Teto Todo Seu”), ela não teria as possibilidades de afirmação do seu desejo e, consequentemente, da sua subjetividade.
No dia seguinte a ter lido O PAPEL DE PAREDE AMARELO, comecei a assistir a uma nova série, ALIAS GRACE, baseada num romance de Margaret Atwood. Trata-se de sua terceira obra adaptada para esse formato. Ainda me falta ver a tão aclamada THE HANDMAID’S TALE que, até onde sei, também aborda a desigualdade entre homens e mulheres. ALIAS GRACE me levou para o século XIX, para o mesmo mundo de O PAPEL DE PAREDE AMARELO. De repente, conto e série pareciam se confundir dentro de mim. São histórias diferentes, mas ambas atravessam a cabeça de uma mulher, a loucura e o encarceramento a que eram condenadas naqueles tempos. Baseada numa figura real. Grace foi condenada à prisão pelo assassinato dos patrões. Nunca se soube se ela os havia matado de fato.
A série centra-se nas visitas de um médico/psicanalista que ouve a sua história. Ele pretende percorrer os enigmas de sua mente, entender se sofre ou não de algum distúrbio mental. Tem dificuldades em afirmar a condição de Grace, mas percebe a série de assédios e violências sofridos por ela ao longo da vida, desde a infância até os anos na prisão. Na primeira fase, vivia aprisionada pelo papel da mulher. Na segunda, condenada a uma prisão literal.
O mais intrigante da série e do conto é a forma como ambos circulam pela mente de suas personagens, levando-nos por um percurso labiríntico que não nos traz qualquer certeza. Impossível saber os limites entre razão/loucura/convenção. Grace matou os patrões? Grace manipula o médico? Controla a sua própria fala? Nós nos perdemos junto com o médico e junto com ela mesma, assim como nos perdemos com a narradora de Gilman. Certeza mesmo, só temos uma: a de que o aprisionamento do desejo da mulher a condenava à reclusão atrás de um papel amarelo e feio, velho e rasgado. E que, muitas vezes, a porta de saída desse papel só podia se manifestar como loucura.
Ainda bem que algumas mulheres, como Charlotte Perkins Gilman e Margaret AtWood, nos ajudam a entender um mundo sem mulheres presas no papel de parede é um mundo melhor.
Fonte: Revista Valor / Tatiana Salem Levy (Doutora em Letras e escritora) em 08/12/2017