O VELHO E O MAR
O SER HUMANO NÃO FOI FEITO PARA A DERROTA. ELE PODE SER DESTRUÍDO, MAS NÃO DERROTADO. ERNEST HEMINGWAY.
Peguei minha edição de O VELHO E O MAR em espanhol e, ao abri-la, uma folha seca caiu ao chão. Coloquei-a sobre a mesa e fiquei olhando sua cor de ouro velho, seu formato lanceolado, suas nervuras cuidadosamente rabiscadas de alto a baixo.
Por que esta folha vive dentro deste livro e por que é tão importante para mim? Simplesmente porque a recolhi do chão, no dia 18 de fevereiro de 2014, como um souvenir que poderia levar da Finca Vigía, sem mutilar nada daquele lugar onde Ernest Hemingway viveu durante muitos anos e escreveu o livro que mais me marcou.
Sim, foi aqui neste palco inundado de luz, nesta casa de campo a poucos quilômetros de Havana, que ele se acordou numa madrugada distante com as primeiras palavras do livro na cabeça. E não perdeu tempo para levantar-se e escrevê-las na pequena máquina Royal que ainda está na prateleira, ao lado da sua cama, mais de meio século depois:
“Era um velho que pescava sozinho em um bote na Corrente do Golfo, e há oitenta e quatro dias não pegava nenhum peixe.”
Nesta primeira frase do livro está toda a genialidade do mestre. Tudo o que ensinamos a nossos alunos escritores nas oficinas de criação literária. Comece sempre, como fazia Hemingway, com uma frase curta e definitiva. Uma frase que conquiste o leitor já no primeiro instante e o faça ler a seguinte e as outras, às vezes devorando o livro de uma só vez. Sim, devorar é a palavra certa. Porque degustar é o que se faz na segunda leitura, quando passou o deslumbramento e podemos admirar os detalhes, como num quadro, numa escultura, numa fotografia.
E por que a frase é definitiva? Porque permanece na imaginação do leitor e define o essencial da história que vai ser contada. O personagem principal deve ser apresentado o quanto antes, é o que ensinamos, e se possível dentro do ambiente onde vai acontecer a principal ação.
Hemingway colocou o essencial da história na primeira frase: o velho pescador, a parcela do mar, a famosa Gulf Stream, onde costumava pescar, e a razão porque se afastou para tão longe da costa, sozinho e num barco tão diminuto: há quase três meses não pegava nenhum peixe e isso o estava matando física e moralmente.
Já na segunda frase, Hemingway apresenta o segundo personagem humano mais importante do relato: o menino que acompanhou o velho Santiago nos primeiros quarenta dias e depois foi obrigado pelos pais a abandoná-lo porque o consideravam definitivamente salao (salgado), ou seja, tomado pela pior forma de azar que poderia existir.
Digo que o menino Manolin é o segundo personagem humano mais importante da narrativa, porque o antropomorfismo, ou seja, a capacidade do escritor de dar personalidade humana ao que não a tem, revela-se já no título do livro. Depois do velho, o mar é o personagem mais importante.
“O velho dizia sempre la mar, assim, no feminino, como dizem em espanhol todos que a amam. Às vezes, quem a ama, também fala mal dela, mas sempre como se fosse uma mulher. Alguns pescadores mais jovens dizem el mar e falam dele como um lugar e até como um inimigo. Mas, para o velho, tratava-se de uma mulher capaz de com ceder ou negar seus favores, sofrendo até, como as mulheres, uma grande influência da lua”.
O outro personagem principal do livro é o próprio peixe, que o narrador precisa esperar por muitas páginas até conseguir apresentá-lo ao leitor:
“Surgiu interminavelmente, vertendo água pelos costados, brilhando ao sol. Sua enorme espada, a cabeça e quase todo o corpo eram de cor púrpura escura, com as largas franjas laterais de um tênue azul avermelhado. Ele é maior do que um bote, disse o velho, mas, graças a Deus, os peixes não são tão inteligentes como nós. Ou, quem sabe, o são?”
Daí em diante, o velho Santiago, que já falava sozinho, em voz alta, há muitos dias, passou a falar com o peixe o tempo todo, revelando sua admiração pela tática que empregava, arrastando o bote na direção onde o favoreciam as correntes marinhas. E o pescador se indaga a razão pela qual o imenso espadarte saltou uma única vez e depois voltou às águas profundas:
“Saltou para me mostrar como é grande. Agora já o sei. Gostaria de mostrar-lhe a classe de homem que eu sou. Mas, então, veria a minha mão paralisada pela cãibra e saberia que só tem um único homem contra ele e que se trata de um velho... Que pense que sou mais homem do que sou, e o serei.”
É então que Santiago se recorda das muitas horas que passou numa queda de braço com um gigante negro de Ciemfuegos. Teoricamente, devia ser derrotado, mas manteve seu olhar firme nos olhos do outro, aparentando, como agora, ser mais forte do que era. E o foi.
Pescar aquele peixe enorme, depois de três dias de luta, é a grande façanha do velho cubano. Atá-lo ao lado do bote e transportá-lo de volta à ilha seria um simples passeio com a vela enfunada, não fossem os tubarões. E é na luta contra eles, mesmo sabendo-se derrotado, que o velho não se deixa destruir, não se deixa abater, usando todas as suas armas primitivas num combate terrível e desigual. Tivesse ele desistido desde o primeiro momento e este livro não seria o que realmente é: uma parábola de valorização do ser humano, capaz de enfrentar todos os obstáculos apenas pela sobrevivência moral. Isso mesmo; essa é a moral da história.
Perguntou-me o Juremir Machado da Silva qual o livro que mais me marcou em toda minha vida. Foi este, sim, desde a primeira leitura, em português, ainda na adolescência, até a que fiz agora, em espanhol, somente uns poucos anos mais moço que o velho pescador. A primeira vez como um jovem leitor e agora como um escritor experiente. E por todas as razões, o livro me sabe cada vez melhor.
Até porque Hemingway esperou mais de 30 anos para escrevê-lo, desde que viu, com 18 anos de idade, um pequeno barco de pesca ser arrastado por um peixe, no porto de Vigo, na Espanha. Esperou todo esse tempo porque, ao assistir à cena inspiradora, nada sabia dos mistérios do mar, nunca pescara um grande espadarte, não tinha experiência de vida nem intimidade com personagens da estirpe de Santiago para traçar a maravilhosa ação de sua narrativa. Esta a principal lição de O VELHO E O MAR. Só se deve escrever sobre o que conhecemos de verdade.
Assim, escorando nosso talento no conhecimento íntimo do que escrevemos, poderemos adaptar a frase do velho pescador: que o leitor pense que sou mais escritor do que sou, e o serei.
Fonte: Correio do Povo – CS Caderno de Sábado/Alcy Cheuiche (Escritor) em 26 de dezembro de 2015.