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Alejo Carpentier: Escritor Cubano, por Léa Masina
Alejo Carpentier: Escritor Cubano, por Léa Masina

REINO DO MUNDO DE CARPENTIER

 

O reino deste mundo (1949), do cubano Alejo Carpentier, tornou-se um cult nos anos 70, durante a Guerra Fria, quando Cuba galvanizava a atenção dos americanos.  O escritor obteve reconhecimento por ficcionalizar, em sua obra, o processo de independência das pequenas colônias da América Central.  Com esse romance, inaugura a revisão histórica do passado colonial, registrado até então pelo discurso do colonizador.  Ao escrever sobre os levantes de escravos nas ilhas do Caribe, sob os influxos da Revolução Francesa, Carpentier recria personagens e episódios vistos e narrados pela ótica dos cativos.  Ao contrário das narrativas tradicionais, dedicadas ao “constructo” das nações, Carpentier expõe o embate entre a razão europeia e a crença local na conjunção de dois reinos: o divino e o humano, sempre interpostos e sucessivos.  Narrando do ponto de vista de Ti Noel, escravo negro a serviço do colonizador francês, o texto reverte e problematiza a tradição narrativa ocidental e cria um universo mítico, híbrido e conflituoso, fruto de culturas multifacetadas.  Esse modo de ver e recriar o mundo através de uma linguagem própria foi designado pelo autor como “real maravilhoso”, algo próximo à construção de universos mágicos, passível de existir e ser percebido se visto longe do racionalismo europeu.  Nesses textos, a magia e o mistério oriundos de cultos africanos são vivenciados pelas personagens como reais e, como tal, lidos e aceitos.  No romance de Carpentier, a mística visão dos negros, com seus Grandes Loas e o Vodu, domina os acontecimentos.  O percurso de Mackandal, escravo que com anda a revolta contra o poder francês em São Domingos, ilustra o contato entre os dois “reinos”.  O dom de transformar-se, metamorfoseado em animais, e seu domínio sobre os venenos da terra conferiam-lhe poder compatível com a ideia de ilimitada liberdade.  A esse tempo, a narrativa induz o leitor a reconhecer um mundo novo.  O soar dos búzios que os escravos da ilha ouvem como um chamado ao levante, assim como a morte de Mackandal na fogueira e sua transformação em pássaro são “milagres” que surgem no confronto entre os senhores cruéis e seus numerosos escravos.  O ponto de vista da narração situa-se nos nativos:  Ti Noel, escravo de Lenormand de Mezy; Makandal, o mandinga feiticeiro; Bouckman, o jamaicano que buscava a liberdade.  Para dar conta dessa visão revolucionária, Carpentier problematiza o discurso, rompendo com sua linearidade.  No capítulo inicial, Ti Noel depara-se com cabeças de cera em uma barbearia local.  E as associa a cabeças de terneiro expostas na crueza dos açougues.  A comparação entre “cabeças” de reis – europeias e africanas –, reforça o desprezo pelos colonizadores e a ironia no discurso do narrador.  Isso é hiperbolizado no episódio da permanência, na ilha, da irmã de Napoleão, Paulina Bonaparte, e seu marido, o General Leclerc.  Ele morre vitimado pelo “vômito negro”, enquanto Paulina é seduzida pelo escravo Soliman e deixa-se dominar pela crença no Vodu.  O contraste entre essas presenças, tão estranhas ao mundo caribenho, acentua a natureza do embate entre o ocidente racional e outras culturas com suas diversidades.  No desenvolvimento da trama, depois de vencerem os brancos, os negros declararam a independência e criam uma república própria.  Não obstante, seu novo “rei”, o mulato Henri Christophe, mantém e exacerba a tirania contra os antigos escravos, criando uma situação ainda mais intolerável porque exercida entre irmãos de raça.  Então Ti Noel, já idoso, depois de regressar aos destroços da antiga fazenda de Monsieur Lenormand de Mezy e assistir aos desmandos da nova escravidão, conclui que o homem sofre e ninguém é feliz.  Não há grandezas a conquistar no reino do céu, mas no reino deste mundo o homem sofre, ama, trabalha e “belo na sua miséria” “poderá encontrar sua grandeza, sua máxima medida”.  Ao examinar as relações entre humanidade e poder e ao dissecar seus mecanismos perversos, Carpentier cria um romance incomum.  Em sua trama lê-se que os es cravos assimilados repetem os comportamentos herdados de seus primitivos senhores.  E o que importa é apenas o homem no reino deste mundo.

 

Enfim, para expressar na literatura o convívio dilacerante entre culturas diversas e inconciliáveis, Carpentier cria o barroco na linguagem, com suas frases enumerativas, concretas e coloridas, donde promanam sinestesias: cheiros, gostos, visões e ruídos.  Estilo atemporal que se sustenta através de oposições e paradoxos, esse barroco latino-americano, visível na linguagem através de oposições e antinomias, nutre-se do misticismo africano e da racionalidade francesa.  Manifesta-se em formas de expressão que congregam rudeza, sangue, morte, luxúria e dor, ao mesmo tempo em que exaltam a epifania e o milagre.  Misticismo, vodu, magia negra, crítica social, história, sociologia.   O reino desse mundo atravessa o tempo como leitura fascinante, sempre reeditado e atual, apto a desafiar a inteligência e a imaginação de novos leitores.

 

Fonte:  Correio do Povo/Caderno de Sábado/Léa Masina (Doutora em Literatura e Escritora) em 4 de junho de 2016.