BOA NOITE, SWEET PRINCE
Um dos maiores especialistas em Shakespeare, impulsionador do conceito de CÂNONE OCIDENTAL, Harold Bloom (1930-2019) deixa a vida dedicada à literatura como legado
Durante uma noite de tempestade na cidade de New Haven, em algum momento na segunda metade do século 20, o crítico literário Harold Bloom (falecido em 14/10, aos 89 anos) sentou-se em seu gabinete para reler O PARAÍSO PERDIDO, de John Milton. Em alguns dias, daria uma conferência sobre o assunto em Harvard. Já lera a obra-prima de Milton muitas vezes, agora, no entanto, queria voltar ao início: desfrutar o poema como se não o conhecesse, ou como se nenhuma pessoa o houvesse lido antes. “Para fazer isso, era necessário descartar de minha cabeça toda uma biblioteca crítica sobre Milton, o que seria virtualmente impossível. Mesmo assim, tentei, pois queria a experiência de ler O PARAÍSO PERDIDO como o lera pela primeira vez, uns 40 anos atrás”, escreveria Bloom anos mais tarde. “E, enquanto eu lia, até adormecer no meio da noite, a familiaridade inicial do poema começou a se dissolver. Continuou a dissolver-se nos dias seguintes, à medida que me aproximava do final, e fiquei curiosamente chocado, um pouco alienado e ainda assim terrivelmente absorto. O que eu estava lendo?”
Além dessa terrível e deliciosa estranheza, Bloom foi invadido pela sensação de testemunhar um duelo gigantesco: nas páginas do poema, Milton lutava contra todos os autores e textos que vieram antes dele, no afã de superá-los e reescrevê-los. Em vez de uma colaboração amigável, a história da literatura surgia como uma guerra ao mesmo tempo bárbara e refinada entre os mortos, os vivos e os não nascidos.
Esse eloquente relato de leitura se encontra no prólogo de O CÂNONE OCIDENTAL, de 1994, e resume de forma esclarecedora as personalíssimas concepções literárias de Bloom. Para ele, a experiência estética não era uma construção social, nem uma manifestação caridosa de interesse pelo bem comum – mas uma empreitada individual, quase selvagem, quase mística, de afirmação da vida e da mente humana. Por isso, o encontro com os clássicos deve ter sempre um toque de estranheza iluminadora.
Nascido em uma família de proletários judeus no East Bronx, em Nova York, Bloom teve uma infância pobre. Mas o destino presenteara o rotundo rapazinho com uma mente extraordinária. Aprendeu iídiche aos três anos e o hebraico aos quatro, sem professor. Adulto, tornou-se um leitor pantagruélico: consumia grossos volumes no espaço de uma hora e podia recitar epopeias inteiras de memória.
Apaixonado por poesia inglesa desde a infância, começou a dar aulas na Universidade de Yale na década de 1950; depois, passou a lecionar também em Nova York. Conhecido inicialmente como estudioso do romantismo inglês, galgou os degraus da fama com a publicação de A ANGÚSTIA DA INFLUÊNCIA, em 1973. Nessa obra, argumentava que o motor secreto da literatura é o “agon” – palavra grega que, na obra de Bloom, designa o esforço dos grandes escritores por sobrepujar os gênios do passado.
Em O CÂNONE OCIDENTAL, defendeu ferozmente a autonomia estética da literatura contra os avanços da chamada “Escola do Ressentimento” – termo hoje célebre, mas nem sempre corretamente compreendido ou aplicado. Os “ressentidos”, para Bloom, são aqueles que colocam a teoria acima da própria literatura e submetem o furor estético a outras considerações – políticas, econômicas, ideológicas e o que mais seja. A literatura, para Bloom, era infinitamente mais importante do que os discursos teóricos que a cercam e às vezes a sufocam: os calhamaços de comentadores e estudiosos deveriam se curvar ante a possibilidade de gozo e descoberta que as páginas de um grande livro nos proporciona.
Outro título indispensável a quem quiser conhecer seu pensamento é SHAKESPEARE: A INVENÇÃO DO HUMANO, de 1998, contendo análises surpreendentes, e às vezes hiperbólicas, das peças shakespearianas. Adepto da “bardolatria” (termo meio brincalhão, meio sério, que designa o culto a Shakespeare enquanto “deus” literário), Bloom defende a ideia de que o autor de HAMLET não foi apenas o maior de todos os poetas do Ocidente, mas também inventou a consciência humana como a entendemos hoje.
Bloom sempre foi um polemista, mas é um equívoco reduzi-lo a intelectual conservador. Sua primeira batalha, quando começou a lecionar, foi contra o conservadorismo cristão da chamada Nova Crítica, que então dominava Yale. Na essência, seu pensamento tem um poderoso traço em comum com o do “sublime Oscar Wilde”: o repúdio a toda sufocação moralista da arte, venha esse moralismo de onde vier. “Tudo o que o Cânone Ocidental pode fazer”, escreveu Bloom, “é nos levar ao uso apropriado de nossa solidão, aquela solidão cuja forma final é a confrontação com nossa própria mortalidade”.
E o resto, como diria Hamlet, é silêncio. Good night, sweet prince.
Fonte: Jornal Zero Hora/Caderno Doc/José Francisco Botelho/Jornalista, autor de CAVALOS DE CRONOS e tradutor de Shakespeare no Brasil em 20/10/19
O FIM DA LITERATURA
Um dos maiores críticos da atualidade morreu no último dia 14 (em outubro), restando uma lacuna
O crítico nova-iorquino Harold Bloom, morto na última semana (14/10), foi um espelho para minha geração. Não que isso importe, mas a verdade é que para muitos de nós – para os piores – ele encarnava a luta contra os efeitos deletérios do politicamente correto e dos Estudos Culturais. Para outros – os sensatos – Bloom era a materialização de um reflexo com poderes de bússola: o que quer que pensasse, tínhamos que pensar o contrário. De qualquer forma, era uma referência. Para mim, uma referência do não: do que não pensar, do que não fazer. Isso é, afinal, um efeito colateral do verbo criticar. Ora, faz parte do ofício crítico estabelecer um parâmetro, uma régua eloquente e firme que fale forte (ainda que fale errado). Críticos precisam acelerar, ir até a zebra, forçar os limites do carro, intuir bem mais do que deduzir. Isso tudo, é claro, deve ser feito de forma cuidadosa e sobre uma sólida base erudita. Bloom era bom nisso. E tinha todos aqueles predicativos socialmente prestigiados: era culto; era estadunidense; era elitista; era branco; era professor da Yale, no temido Departamento de Humanidades. Essas coisas sem dúvida o ajudaram – bem mais do que ele gostaria de admitir – a entregar à sociedade tudo aquilo que ela espera dele.
Sua obra mais relevante foi publicada em 1973. A ANGÚSTIA DA INFLUÊNCIA é uma investigação que redimensiona a importância do autor no sistema literário. Pensando na poesia, Bloom propõe uma análise sobre o modo como certos autores se relacionam com a própria ideia de Literatura, que se apresenta no momento em que decidem escrever uma obra. Trocando em miúdos é como se ele chamasse atenção para uma dicotomia simples e insuperável: quem se senta para escrever precisa justificar seu ato, travando um duro diálogo com suas próprias influências. Essa DR estética é construída em meio a um complicado equilíbrio entre a vontade de destruir tudo o que foi feito antes e de levar para o futuro tudo o que nos trouxe até aqui. Escrever seria um ato essencialmente psicanalítico, em que o indivíduo usa o passado para construir as ferramentas que lhe permitirão se libertar do passado.
Seis anos antes, Roland Barthes havia fascinado todos nós com o reacendimento das discussões sobre a suposta morte do autor. Bloom trouxe, portanto, uma proposta de retorno de nossos heróis de papel. Apesar de sua competência intelectual, seu brilho não era, contudo, resultado de valores individuais, mas vinha do comportamento de seus pares. Explico: a maior parte dos críticos se recusa – há décadas – a fazer seu trabalho. Vivem de visitar de forma inconsequente a ideia dos antecessores, como se estivessem em um tour pelo museu da memória da Teoria. Não são marxistas, não são liberais, não são formalistas, não são estruturalistas, não são culturalistas, não tomam nem Coca nem Pepsi; não vão à praia nem ao shopping. Eles superaram o dilema das escolhas porque nunca de fato escolheram. São sempre todas as coisas por que jamais se tornaram uma delas. Difícil encontrar teóricos dispostos a seguir à risca seus próprios conceitos de literatura. Pior, bem pior: difícil encontrar teóricos dispostos a seguir à risca um conceito mínimo, qualquer conceito de literatura. Se um terraplanista encontrasse um crítico literário no século XXI, poderia o primeiro adormecer suave com a opinião do segundo: “Por que temos que definir se a Terra é redonda ou plana? Por que não podemos deixar essa questão em aberto? Que mania é essa de encerrar, rotular, mensurar aquilo que nos é tão caro? A força da Terra não seria justamente essa: a de ser, a um mesmo tempo redonda e plana?”
Os críticos não desejam mais criticar. Estão hoje presos em seus dois exercícios diretos: agregar e salvar: agregar leitores e salvar autores. Em um mundo onde os pensadores se transformaram em divulgadores das obras e os eventos de literatura mergulham na tentação de serem quermesses, Bloom fará falta. E isso é ainda pior do que a notícia de sua morte biológica. Há um tipo de crueldade intelectual que nos obriga a lutar não apenas por nossas causas, mas pela manutenção de um padrão mínimo de comportamento ético do lado oposto ao que estamos. A esse tipo de crueldade chamamos de realidade.
Eu não queria, mas penso que o esforço por encontrar uma finalidade positiva para a literatura por vezes resulta em uma instrumentalização corrosiva, que transforma finalidade em término, objetivo em limitação. E isso – eu não tenho como mentir – é ruim.
Fonte: Jornal Correio do Povo/CS/Luiz Mauricio Azevedo/Doutor em Teoria e História Literária, pela Unicamp; autor de A MANIPULAÇÃO DAS OSTRAS (Figura de Linguagem) em 26/10/19