ORLANDO, DE VIRGÍNIA WOOLF
PROFESSORA E CRÍTICA LITERÁRIA ABORDA O MASCULINO-FEMININO DA AUTORA BRITÂNICA.
Nem sempre os bons livros são de fácil leitura. ORLANDO, de Virgínia Woolf**, é um desses. Ele desestabiliza o leitor porque acaba com a ilusão de que tempo e espaço são unidades fixas, ao confundir, no texto, as fronteiras entre ação e reflexão. Se ainda hoje provoca estranhamento, imagine-se quando de sua publicação na Inglaterra de 1928. A biografia de Virgínia Woolf deixa claro que sua vida nada teve de comum: foi alfabetizada e estudou literatura com o pai, Sir Leslie Stephen, pertencente à elite intelectual de Londres. Ela e seus irmãos cresceram entre escritores e artistas e muito cedo publicou seus textos em revistas e periódicos locais.
Jovem, integrou o círculo intelectual de Bloomsbury, a que também pertenciam E.M. Forster e o poeta T.S. Elliot. Nesse meio, Virgínia conheceu seu futuro marido, o crítico Leonardo Woolf, com quem criou a editora Hogarth Press. Dispondo de editora própria, Virgínia Woolf pode dar livre curso à experimentação narrativa. Como se lê em ORLANDO, essa experimentação consistiu em transformar as categorias romanescas de tempo, ação e espaço, enquanto que seu texto desconstrói simbolicamente a oposição entre os sexos masculino e feminino. Sua personagem principal, Lord Orlando, transforma-se em Lady e depois, através de séculos, em Lord e Lady numa metamorfose constante e contrária aos padrões de verossimilhança.
Além disso, a autora investe em nova escritura na qual cada parágrafo explora ideias instigantes, submetendo a experiência e o pensamento à percepção, que é sensação refletida. Disso decorre uma prosa poética essencialmente metafórica, que exige a participação do leitor para a compreensão do texto. E o próprio enredo não se deixa resumir em perda de qualidade. É comum a crítica considerar ORLANDO expoente de uma literatura de gênero pela abordagem do binômio masculino-feminino. Mas, no romance, o gênero depende de circunstâncias e opções, o que recobre a bissexualidade enquanto proposta.
Por muitas razões inclui-se ORLANDO no cânone da literatura ocidental: uma delas é a prodigiosa imaginação da escritora que concede um tempo infinito à personagem, iniciando o livro na era elisabetana para finalizá-lo depois da primeira guerra mundial. E a obra termina quando cessa a biografia de que se ocupou por 350 anos, rompendo com o tempo dito real e substituindo-o pelo tempo da consciência, do sentimento, da memória e da vontade.
Virgínia escreve uma biografia que lhe permite inventar e comentar com o leitor os fatos que lhe interessam. Algumas passagens, com suas digressões, podem ser lidas como poemas, o que se acentua na tradução brasileira de Cecília Meireles.
Virgínia transfere a ORLANDO sua paixão pela literatura, o que considera uma doença agravada pela escrita. Poetas e vida literária causam tanto sofrimento a Orlando quanto a paixão pela princesa russa que o abandona. E a única certeza é de que Orlando manterá para sempre o longo poema “O Carvalho”, fio condutor que atravessa o livro.
Se o tempo ficcional permite viajar pela história da Inglaterra, na profunda e irônica relação com os costumes vitorianos e a condição de país colonizador, a categoria espaço também é objeto de rara transformação: quando Lady Orlando encontra-se entre os ciganos e retira-se, cansada, para refletir junto às pedras e montanhas do árido local, abre-se diante dela uma clareira onde surgem os gramados e as construções de seu castelo na Inglaterra. Como nos sonhos, basta-lhe adentrar o espaço que se oferece e, num passe de mágica, ela se transporta a seus antigos domínios. Senhora de uma imagem magistral da memória, costureira caprichosa que mistura fragmentos e os une por fios invisíveis. Virgínia subverte a relação tempo-espaço-narrativa.
Aliás, a passagem de Orlando pelas tendas dos ciganos contém outra reflexão avançada para a época: a cultura, que produz sentimentos, determina a linguagem. Quando Orlando contempla, embevecido, o sol que se põe, não tem palavras para falar da grande beleza. Os rudes ciganos limitam-se à experiência concreta. E o espetáculo do pôr do sol só pode ser enunciado como algo bom para comer. Essa impossibilidade atesta a argúcia da escritora: a literatura existe para nomear o que deslumbra o homem. Literatura tem a ver com interjeição e construção de conceitos. Pensa-se com a linguagem. E, como a crítica tem observado, em Orlando um marcante esteticismo substitui o erotismo velado, comum aos romances da época.
Também chama atenção o estilo associativo, que agrega imagens e fluxos de consciência, relacionando biógrafa e biografia. Inclusive, é comum aproximar Orlando de Virgínia Woolf e sua amante Vita Sackesville West. Em uma Inglaterra onde a homossexualidade era criminalizada, o escândalo responderia pelo sucesso do livro. Hoje, sobressai a admiração pela estrutura inusitada do romance e pelo estilo, no mínimo, brilhante.
De fato, a autora obtém o efeito de teatralização situando o ponto de vista narrativo nos olhos de Orlando. Tudo é visto e vivido por ele como espetáculo. A vida é um teatro e essa é a grande ironia. A biógrafa atenta amplia o olhar de Orlando por ressonâncias simbólicas. As intervenções narrativas pontuam com finura a crítica social de que a obra está impregnada. Virgínia fala a homens e mulheres de seu tempo e do futuro. Ela vence as barreiras das convenções literárias: desconstrói as categorias narrativas de tempo, ação e lugar para repropor o humano através de uma verossimilhança própria.
** ORLANDO, UMA BIOGRAFIA. / Virgínia Woolf; tradução e notas Tomaz Tadeu; posfácio Silviano Santiago. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
Fonte: Correio do Povo – CS Caderno de Sábado/Lea Mesina (Professora de Literatura da UFRGS. Doutora em Literatura Comparada. Crítica Literária) em 26 de dezembro de 2015.