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Marquês de Sade: Símbolo da Liberdade Sexual
Marquês de Sade: Símbolo da Liberdade Sexual

                                         No cinema, o filme "Contos Proibidos do Marquês de Sade" relatou a história do libertino, interpretado por Geoffrey Rush.

 

OS MUITOS TONS DE DEVASSIDÃO DO MARQUÊS DE SADE.

 

Aristocrata francês tornou-se símbolo da liberdade sexual no fim do século 18.

 

Anastasia Steele, uma estudante de literatura tímida e virgem, é seduzida pelo bilionário Christian Grey.  Ele algema sua “presa” e desliza uma pedra de gelo por seu corpo.  Logo depois, usa um chicote e abusa das palmadas.  A cena de “50 Tons de Cinza”, em cartaz nos cinemas do País, pode ser chocante para parte dos espectadores, mas não espanta os leitores do Marquês de Sade.  O nobre francês foi o baluarte do comportamento libertino, comum na aristocracia no fim do século 18.  Descrevia e praticava o erotismo violento, que chocou gerações e imortalizou seu nome – vem dele a palavra “sadismo”.

 

Autora do livro que batizou o blockbuster, a britânica E.L. James não costuma se pronunciar sobre qualquer possibilidade de ligação entre sua obra e  as dezenas de livros e ensaios de Sade.  Para os fãs de “50 Tons de Cinza”, trata-se apenas de uma história de amor.  O nobre francês foi muito além.  A sucessão de escândalos o levou a passar 32 de seus 74 anos de vida preso ou internado em hospícios.

 

Sade acreditava que o desejo é uma imposição da natureza e, por isso, tudo justificava o prazer.  Para ele, a sociedade é hipócrita e suas supostas virtudes atrapalharam o caminho rumo à liberdade sexual.

 

Para a crítica literária Eliane Robert Moraes, autora de “Sade: A Felicidade Libertina” – que será relançado este mês pela Editora Iluminuras –, havia três grupos de libertinos.  “Os libertinos de costume eram aristocratas que se entregavam a orgias e bebedeiras.  Era gente do teatro, que fazia farras e muitas vezes era cruel com as pessoas mais simples.  O segundo grupo é o dos filósofos de espírito, ateus e materialistas.  A terceira corrente é a literária, que traz uma temática sexual, livre, de fantasia.  Sade reuniu essas categorias e levou tudo ao extremo”, explica Eliane.

 

A sociedade hierarquizada da época legitimava o direito do mais forte.  A mulher poderia ser facilmente dominada para a satisfação dos desejos sexuais.  De acordo com Clara castro, pós-doutoranda em Filosofia, a Justiça era conivente com diversos tipos de abuso.  “Um estupro seria considerado uma sedução, e a condenação recairia em um suposto consentimento da mulher, e não na violência do homem.  Tratando-se de um nobre, então, suas agressões eram amplamente toleradas”, revela.

 

Sucessão de escândalos.

Antes de passar mais de três décadas na prisão, Sade – nascido Donatien Alphonse François de Sade, em 1740 – parecia destinado a uma vida sem dificuldades.  Foi criado em um castelo, formou-se como militar e participou como oficial da Guerra dos Sete Anos, encerrada em 1763.  Após o confronto, como era costume na nobreza da época, ofereceram-no para casamento a Renèe-Pélagie de Montreuil, filha de um rico magistrado.  Não foi o suficiente para que abandonasse a bebedeira e a companhia de prostitutas.  Cinco anos depois, protagonizou um dos maiores escândalos da época.

 

O marquês foi abordado na rua por uma pedinte, Rose Keller.  Em vez de esmolas, ele a prometeu um emprego no castelo onde morava.  Contra a vontade da mulher, o nobre a amarrou na cama e a chicoteou, para depois pingar cera quente sobre os ferimentos.  Repetiu o ritual oito vezes, até que Rose, que foi trancada no quarto, conseguiu saltar pela janela e chamar a polícia.  Foi a primeira passagem de Sade pela prisão.

 

A “lição” durou pouco tempo.  Em 1772, ele e seu servo foram acusados de envenenar prostitutas e de sodomia.  Para escapar da sentença de morte, Sade fugiu para a Itália com seu novo caso, a cunhada Anne-Prospère.  Foi preso, mas escapou meses depois.  Isolou-se, então, em seu castelo, na França, onde promoveu orgias.

 

A partir de 1777, começa uma sequência de aprisionamentos, incluindo uma temporada de dez anos na Bastilha, a mais famosa prisão da França.  Atrás das grades, Sade escreveu algumas de suas principais obras, defendendo o desprezo pelas regras sociais.  Enquanto isso, seu castelo era invadido e os bens, confiscados.  A partir da Revolução Francesa, em 1789, seu status de aristocrata perdeu qualquer serventia.

 

“No período da Bastilha, Sade escreveu ‘Os Cento e Vinte Dias de Sodoma’, sua única obra sem pretensões filosóficas.  Foi uma descrição das perversões da época a partir do relato sobre as ações de quatro personagens que representavam a elite:  um nobre, um militar graduado, um banqueiro e um religioso.  Eles reúnem-se em um castelo durante quatro meses, onde estupram mais de 40 virgens e rapazes”.  Conta Flávio Braga, autor do livro “Sade em Sodoma”.

  

Obra perdida e banida.

Sade escreveu seu livro clandestinamente, em pequenos pedaços de papel, guardados em frestas da cela.  Com a tomada da Bastilha, marco da Revolução Francesa, acreditou que havia perdido seu trabalho para sempre.  Os manuscritos só foram encontrados no início do século 20, permitindo finalmente sua publicação, em 1905.

 

Além das histórias de Sodoma, Sade deixou outros livros, alguns clandestinos, que sublinhavam como nada superava as necessidades do corpo.

 

“Sade tornou-se símbolo do comportamento libertino pelos seus escândalos sexuais, plenos de sacrilégios religiosos que agrediam diretamente o moralismo beato da época”, destaca Clara.  Outro fator foi o sucesso de seus livros clandestinos, como a segunda versão de “Justine”, de 1791.  Os jornais atribuíam a autoria a ele, apesar de suas negativas, por medo da censura.

 

O título de nobreza exerceu um papel importante na trajetória de Sade, tanto nas iniciativas quanto em suas punições.  “Ele não queria apresentar nada à sociedade com os seus escândalos.  Provavelmente agia como outros aristocratas debochados da sua idade:  abusava do título de nobre de longa linhagem”, cogita Clara.  Seus excessos certamente foram menos tolerados por causa das circunstâncias agravantes, como os sacrilégios e as sodomias.

 

O tempo no cárcere deixou marcas profundas no marquês.  Foi na prisão que se transformou em escritor profissional.  No entanto, os tempos da libertinagem que descrevia vigorosamente foram deixados para trás.  “Depois de mais de uma década enclausurado, já nos seus 50 anos, Sade estava obeso, sofria de enxaqueca, reumatismo, gastrite e problemas na vista.  Além disso, os tempos eram outros.  A Revolução havia acabado tanto com a sua fortuna quanto com todos os seus privilégios de aristocrata”, relata Clara.

 

Os revolucionários apagaram as chamas do marquês.  Libertado em 1790, escreveu textos políticos e buscou novos aliados, mas teria sido hostilizado por seu passado de aristocrata.  Napoleão Bonaparte ordenou novamente sua prisão.  Em 1803, foi declarado insano e transferido para um asilo.  Como insistiu em escrever, foi proibido de ter acesso a papel e pena.  Morreu 11 anos depois.  Durante parte desse período, conseguiu manter um relacionamento com uma menina de 14 anos.  Foi o capítulo final do escritor que deu novos contornos ao conceito de sexualidade, capaz de espantar a sociedade até hoje.  (De Renato Grandelle/AG)

 

Fonte:  Jornal O Sul-Caderno Reportagem-04/03/2015