CALAFRIOS EM NOITE FRIA
O FRIO COMO PERSONAGEM: O frio, em muitas obras literárias, é cenário, plano de fundo, obsessão, moldura, motivo de ações desesperadas ou generosas de protagonistas e até, de certo modo, personagem.
Noite de ventos, de uivos, de espantos, de esperas, de inventos, noite de memórias, de histórias, eventos de outros tempos, recordações de versos e reversos, lembranças de rios, de frios, de calafrios, navego em arquivos, em livros, apontamentos, pensamentos de companheiros de viagem:
HOMERO
Em manhã fria, Ulisses, coberto de andrajos, deixa a cabana do primeiro de poucos amigos. Passos inaugurais para a reconquista do palácio real. O aventureiro penetra num bosque para sorver ares divinos. Palavras de insulto o inquietam. Haja força para enfrentar rancores! Do frio da manhã ao calor das armas.
HESÍODO
Nos rigores do inverno, o frio detém-se no vestíbulo de cavernas iluminadas. Línguas de fogo, dádiva de Prometeu, invariáveis nas mãos enraivecidas de Zeus, diversificam-se em fogões, em fornos, em forjas, em dardos. Nas lides do homem, o fogo renasce multiplicado. Imprevisível é a falta, o frio; imprevisível, o remédio, o calor.
OVÍDIO
Os romanos celebram nas Saturnálias o retorno do Sol e da vida. Saturno impera no inverno: idade de ouro, paraíso, sono, tempo sem tempo. Aproximemos idade de ouro, útero e inverno, período em que raízes dormem no ventre da terra. A superfície gelada apaga diferenças, detém conflitos, instaura a paz. Desinteligências vêm depois.
HORÁCIO
Quem almeja êxito literário abstenha-se do amor, do vinho, sujeite-se ao frio. Não se publiquem poemas que não tenham sido revisados dez vezes, pelo menos. A obra de mérito prospera em cavernas cobertas de gelo. A alegria é obra da formiga e da cigarra reconciliadas.
WILLIAM BLAKE
A revolução industrial proclama o divórcio do céu e do inferno. Homens prósperos saúdam em salas aquecidas o Eterno, o Rei. No baile dos flocos de neve, vestidos com os trapos da morte, o limpa-chaminés, um menino, varredor. Eles, no céu; eu, na miséria. Amém.
FRIEDRICH HÖLDERLIN
Antes de brilhar no cérebro, a vida incendeia o coração. O jovem repousa no inverno, floresce na primavera. Águas descongeladas no peito e nos campos embranquecidos borbulham ritmadas, fluem, cantam. Seiva poética irriga o caminho das estrelas para a alegria dos homens. O Gênio, divindade tutelar dos que nascem, frequenta a variedade cadenciada dos versos.
HENRIK IBSEN
Ibsen, teatrólogo revolucionário, dramatiza oposições. Uma noite fria, iluminada por chamas, leva ao reino das sombras a esposa e dois ilhós de Solness, construtor. O território coberto de cinzas abre espaço a mansões que enriqueceram o competitivo empreendedor. Enfraquecido pela idade, Solness, próspero e impiedoso, desaba de uma torre aos braços da morte. Do mesmo frio brotam brilho e ruína. A peça “Solness, o Construtor” é citada nas primeiras páginas do “Finnegans Wake”, de James Joyce.
GEORG TRAKL
A voz criadora arranca Kaspar Hauser dos grilhões da natureza. Paradisíaca transcorre a vida do jovem no aconchego das plantas, no calor do sol, na saudação volátil das aves. Vem a banição. O exilado busca a cidade, sonha com trabalho honesto, incorporação militar, serviço na cavalaria. Desejo sem resposta. Kaspar traz o assassino no seu próprio corpo, declina o sol, a cabeça tomba. Preso ao ciclismo das estações, Kaspar vê neve descer sobre galhos desnudos, argêntea tomba a cabeça do não-nado. Na trajetória de Kaspar Hauser transluz a marcha da humanidade. O expressionismo de Trakl universaliza conflitos.
T.S. ELIOT
Comparado com “La Legénde des Siècles” (vitor Hugo), o poema “The Waste Land” (A terra desolada) de Eliot não passa de projeto falido. Terra desolada é também a do poema. Vanguardas roem vínculos. No território árido, o gênio seca. Aí estão as quatro estações, as do indivíduo e as do mundo. As chuvas avivam memórias: desejos, agonias, raízes. A primavera desperta o que o inverno aconchega. Verão é o tempo da dispersão, das conversas fúteis, das viagens, dos folguedos. O poeta escreve no outono, época em que a vida empalidece. O inverno enterra raízes e ossos. O colapso anuncia a regeneração.
ORHAM PAMUK
No mundo há mundos. Neve chama-se um dos romances de Pamuk. Elevações brancas fecham caminhos. Golpes de indivíduos e de Estado. Opressões. Bocas fechadas, revoltas caladas. Amores e ódios: paixões. Falas cifradas. Interdições, tiros, balas perdidas, abalos, sumiços. Como escolher em superfície nevada? A morte é a única porta do mundo fechado.
ESTREITO DE MAGALHÃES
Visito o Estreito de Magalhães acompanhado do Rafael, meu neto de 11 anos. Navegamos dias e noites num labirinto de ilhas. Refazemos roteiros percorridos por Magalhães, navegante português a serviço da coroa espanhola, em procura de passagem ao Pacífico. Visitamos pinguins e monumentos erguidos a Darwin, ávido de rastros que desvendem a origem da vida. O guia nos mostra geleiras que se encolhem. Fim de um ciclo vital?
Fonte: Correio do Povo/CS/Donaldo Schüler (Professor, escritor e tradutor) em 27/8/2016.