O EXORCISMO PELA IMAGINAÇÃO
Na superfície, DOIS ANOS, OITO MESES e 28 NOITES, de Salman Rushdie, é só uma fantasia sobre criaturas mágicas de colorido oriental. Mas esse romance delirante evoca o pesadelo que o autor viveu quando foi condenado à morte pelo fundamentalismo islâmico.
Choque de Civilizações – Rushdie: mesmo no meio da narrativa mais alucinada, a razão é sempre o ponto de equilíbrio.
Já na primeira página, o novo romance de Salman Rushdie se apresenta como uma fábula juvenil. Ao contar uma história mirabolante que vai do século XII aos nossos dias, o livro submete referências eruditas a uma estética de história em quadrinhos, com pessoas que levitam, gênios do mal soltos da lâmpada, djins (seres mitológicos que vivem na fronteira do humano e do fantástico) que se transformam em feministas fazendo greve do sexo, monstros, bruxas e feitiços em profusão. Mas a suposta simplicidade narrativa de DOIS ANOS, OITO MESES E 28 NOITES oculta um tema literalmente explosivo, quando a barbárie do terror de inspiração islâmica – o mesmo que voltou a agir na semana passada, na Bélgica – parece devolver a civilização humana às últimas trevas da Idade Média. Ao retomar o realismo – este realmente mágico – da tradição oriental, a maravilhosa fonte de AS MIL E UMA NOITES, Rushdie quer, de fato, mais uma vez, exorcizar o terrível fantasma existencial e literário que haveria de transformar sua vida para sempre.
Em 1989, quando boa parte da consciência ocidental ainda se regozijava com a vitória da Revolução Islâmica do Irã contra a ditadura do xá Reza Pahlevi, Rushdie foi objeto de uma fatwa, uma maldição irrecorrível do líder Khomeini, que o condenava (e a todos os responsáveis pela publicação de seu livro OS VERSOS SATÂNICOS) à morte. Era a pura, simples e inacreditável expressão de uma sólida política religiosa de Estado, com ramificações globais que parecem inesgotáveis. No centro involuntário de um inferno que desabou sobre sua cabeça, obrigado a viver durante anos anônimo, sob a proteção da polícia inglesa (experiência excruciante que ele relata no excepcional JOSEPH ANTON, de 2012), Rushdie não se livraria mais do tema e de suas implicações. De que modo a literatura – essa criação que se desenhou ao longo do processo civilizador como uma das expressões mais fortes do desejo de liberdade – deve responder ao poder da barbárie? No caso de Rushdie, esse é um problema eminentemente pessoal, e não uma abstração inofensiva. Podemos ler seu último romance sob essa perspectiva.
Eis o argumento, que tem uma assustadora atualidade: uma Guerra dos Mundos nos dias de hoje, movida por entidades mágicas, contrapondo os dois princípios filosóficos que estariam na origem da divisão cultural entre Oriente e Ocidente – de um lado, os filhos de Ibn Rushd (1126-1198), conhecido no Ocidente como Averróis, o filósofo que aproximou o saber islâmico da filosofia do grego Aristóteles; e, do outro, os conceitos de Ghazali (1058-1111), que defendia a estrita obediência ao profeta Maomé e se colocava contra o primado da ciência sobre a religião. Equilibrando-se nesse fio filosófico, DOIS ANOS, OITO MESES E 28 NOITES é uma narrativa delirante sobre os nossos dias, contada por um historiador que revive os fatos 1000 anos depois.
Salman Rushdie é ele mesmo o encontro de dois mundos. Nascido em Bombaim, na ìndia, em 1947, de pais muçulmanos, recebeu formação inglesa, e sua literatura funde as duas influências. No livro, a velha batalha filosófica e religiosa entre Averróis e Ghazali é retomada numa narrativa cosmogônica em que a fantasia, por mais alucinada que seja, se vê enquadrada pela necessidade da razão como ponto de equilíbrio - “a desrazão derrota a si mesma”, sussurra no túmulo o esperançoso espírito de Ibn Rushd. Não é fácil resumir o feérico caleidoscópio do livro, mas bastará antecipar que a personagem-chave, o seu contínuo eixo de referência, é a djin Dúnia, uma simpática criatura de substância imortal “feita de fogo sem fumaça”, amante dos prazeres e do sexo, e que habita o mundo paralelo dos entes mágicos. Fazendo-se esposa de Averróis, gera uma descendência de seres hibridos, de pendores ocidentais.
Oitocentos anos depois, a mesma Dúnia se apaixonará incestuosamente por um dos seus “octonetos”, um certo Mr. Gerônimo (que amanhece um dia levitando como uma figura de Magritte), e então se desencadeia a tal “Guerra dos Mundos”. No final, a narração lembra que é terrivel “uma pessoa falar metaforicamente e a metáfora se tornar uma verdade literal”. Rushdie parece fazer referência ao indizível absurdo moral de que foi vítima: “Ele queria de volta a ficção do real. Passear, caminhar, correr e pular, cavar e cultivar. Existir como uma criatura da terra, e não como algum demônio”.
Fonte: Veja/Cristovão Tezza em 30/03/2016