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Duas Alices e uma Ana: por Jane Tutikian
Duas Alices e uma Ana: por Jane Tutikian

DUAS ALICES E UMA ANA ALÉM DO TEMPO.

 

LITERATURA INFANTIL – “... NÃO É A INTENÇÃO DO ESCRITOR QUE VAI DETERMINAR A ACEITAÇÃO DA OBRA X OU Y...”

 

Pensemos juntos:  literatura infantil é literatura?  Certo que é! E nisto creio que todos concordamos.  Ela tem os aspectos e finalidades comuns do que chamamos de literatura, embora, é verdade, traga um tipo diferenciado de linguagem.  O texto precisa chegar, dar prazer e mais:  possibilitar ao jovem leitor a construção de um outro texto (como qualquer ato de leitura), um texto em que se reconheça.

 

Jean-Paul Sartre, em seu O QUE É A LITERATURA?, diz que a escolha da linguagem e da faixa etária não é do autor.  Existe uma escolha anterior: o tema, e o tema é que vai determinar todo o resto.  Isso equivale a dizer que não é a intenção do escritor que vai determinar a aceitação da obra X ou Y. Isso, de certa forma, explica porque certos livros escritos para crianças foram incorporados à leitura adulta e vice-versa.  Ou não.

  

Os exemplos são vários e todos eles apaixonantes, mas, para mim, nenhum é mais apaixonante do que ALICE, e eu conheço três. Não.  Conheço duas Alices e uma Ana, que só não é uma Alice porque é Ana.

 

Não consigo pensar em ANA Z. AONDE VAI VOCÊ?, de Marina Colasanti, sem referir à ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS, de Lewis Carroll, como é impossível falar de Alice, de Whoopi Goldberg – a artista norte-americana de cinema – sem referir àquela.  Entretanto, Alice de Carroll é Alice, Alice de Whoopi é outra Alice, inclusive uma Alice negra, e Ana Z. é Ana Z.

  

Enquanto a Alice de Whoopi tem como espaço a cidade grande – Nova Iorque –, com os seus mundos e submundos, que atravessa atravessando o túnel do metrô com seus dois companheiros: o excêntrico Robin e o coelho invisível Sal, em busca do grande prêmio que mudará sua vida, e que resulta em uma propaganda enganosa, a Alice de Carroll e a Ana Z. de Marina, uma porque caiu na toca do coelho, outra porque decide descer no poço atrás das contas do colar, são reveladoras de um espaço outro, construído a partir de elementos constitutivos do real, mas ultrapassando-o, ou seja: revelando o que de maravilhoso nele existe ou o que de maravilhoso em nós existe.  Embora o traço realista e 2 irônico de Goldberg, as três, as duas Alices e Ana Z. desvendam o poético, o patético, o absurdo e o maravilhoso na autodescoberta e na descoberta da vida.

  

Se o rito de passagem sugere a mesma ideia de túnel, de renascimento – e de fato, as três saem dessa ideia modificadas –, seja a toca do coelho, seja o metrô cujos grafittis coloridos evocam o caleidoscópio, seja a passagem do poço, onde “a luz lá em cima brilha redonda e pequena como uma Lua”, estabelece-se entre Alice, Alice e Ana Z. uma diferença fundamental: a questão do sonho ou o distanciamento entre o real e a fantasia.

 

Em Carroll, há a ruptura.  Se, quando a Lagarta pergunta à menina: Quem é você?, ela responde: “Eu – eu mal sei, senhor, neste momento – ao menos sei quem eu era quando acordei esta manhã, mas acho que devo ter mudado muitas vezes desde então”.  Logo restabelece-se a ordem, rompendo com o humor maravilhoso que predomina sobre a lógica, quando Alice acorda de um sonho.

  

Em Whoopi Goldberg, há também a ruptura, embora o sonho seja de outra natureza: o sonho no sentido de esperança: “Eu vou ser rica e famosa e ter tudo o que sempre quis: uma casa grande, diversão e uma grande quantidade de bons amigos – tudo o que o dinheiro pode comprar”.  E o fato de ter sido enganada – por uma propaganda que a declara vencedora de um grande prêmio e na verdade trata da venda de um pântano na Flórida –, rompe com o sonho, mas a faz despertar para uma outra concepção do real, de certa forma moralizante, quando a moça do guichê diz:  “Querida, você é rica.  Olha para os seus maravilhosos amigos que estão com você quer ganhe ou perca.  Pense sobre a fantástica aventura que viveu.  Nem todo o dinheiro poderia comprar essas coisas”.  Este novo valor, entretanto, não anula a fantasia, uma vez que os amigos continuarão os mesmos: o Robin e o coelho invisível Sal, por outro lado, também não vai mudar o real, que continuará com a ganância, seja dos homens malvados ou seja da malvada rainha, aqui, a rainha das “meninas” / mulheres do submundo, mas que será salvo por uma nova percepção.

  

Em Ana Z., a ruptura não existe, porque não existe sonho, a fantasia se incorpora ao real.  Quer dizer:  Ana Z. é um caminho trilhado: ela é o dentro e o fora do poço, a fusão, portanto, de múltiplas realidades.  Em busca das contas do colar, Ana desce, pelos degraus escuros de ferrugem, cravados nas paredes, até o fundo do poço, onde encontra uma velha tricotando um fio de água.  Como falta uma conta e a velha diz que algum peixe deve ter achado bonita e engoliu.  Ana sai atrás dos peixes.  E quando entra em contato com as personagens e universos mais insólitos, como a toupeira, o mineiro que garimpa o ouro para fazer as escamas dos peixes, os dois restauradores da tumba/ cuca, as personagens do deserto, a miragem, o cameleiro, o sultão, o homem azul, o construtor de barcos, a cidade do terremoto e as crianças mentirosas, as figuras do estúdio de cinema... Aí, tudo se torna possível e o maravilhoso é a possibilidade cotidiana deslocada para o caminho de Ana, sob a forma de alegoria.

 

Fica a pergunta: as obras de Colasanti e de Goldberg são herdeiras da Alice de Carroll?  Sem dúvida, são, mas são também dos ritos iniciáticos de povos primitivos em que o iniciado submete-se a inúmeros desafios cuja superação comprova seu amadurecimento, aprontando-o para uma nova etapa de vida, e o são, ainda, da lenda da Sherazade e dos contos de Perrault e dos irmãos Grimm.

  

Tudo bem, mas, aí, vem uma outra pergunta: e nós, adultos, como ficamos nisso?  Não há como viver sem fantasia.  A fantasia é vital.  (Aliás, Nietszche já dizia isso.)  Assim, nós também somos a Alice de Lewis Carroll, a Alice de Whoopi Goldberg e a Ana Z. de Marina Colasanti e somos em qualquer idade e em todos os tempos.  Uma prova?  Imagine a lagarta, parada à sua frente, perguntando:  “Quem é você?”.  Simplesmente responda, pensando no seu dia, e compare com a resposta da Alice.  É mesmo muito diferente?

 

A verdade é que só as grandes obras são capazes de falar com o mundo e adentrar no humano sem lhes impor, ao mundo e ao humano, o tempo.  “ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS, ALICE e ANA Z., ONDE ESTÁ VOCÊ?” são.

 

Fonte:  Correio do Povo – CS Caderno de Sábado/Jane Tutikian (escritora) em 10 de outubro de 2015.