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Tár, do diretor Todd Field
Tár, do diretor Todd Field

O SOLO DA REGENTE

 

Finalmente chegou aos cinemas de Porto Alegre, no Espaço Bourbon Country, TÁR (2022), filme que deveria dar o Oscar de melhor atriz a Cate Blanchett.  Seria o ápice da trajetória vitoriosa que começou com a Copa Volpi, no Festival de Veneza, e inclui o Bafta, o Critics'Choise, o Globo de Ouro e o troféu da criteriosa National Society of Film Critics.

 

Uma rara derrota aconteceu no Gotham, só que a vencedora, Danielle Deadwyler, de TILL, não concorre na premiação de 12 de março.  Mas o favoritismo da australiana de 53 anos sofreu um sério abalo na entrega do Screen Actors Guild Awards, no domingo passado (final de fevereiro): o Sindicato dos Atores dos EUA laureou Michelle Yeoh, de TUDO EM TODO LUGAR AO MESMO TEMPO (ela também ganhou o Globo de Ouro de atriz em comédia ou musical).  Nas 28 edições anteriores do SAG, em 21 vezes houve coincidência com a escolha da Academia de Hollywood.

 

Se Blanchett é a estrela de TÁR, seu diretor, Todd Field, é um personagem à parte. Primeiro porque fazia 16 anos que este californiano de 59 anos não lançava um filme.  Entre 2008 e 2009, houve rumores, notícias e até anúncios de vários projetos, como um sobre a Revolução Mexicana (ora com Leonardo DiCaprio, ora com Christian Bale e, por fim, com Daniel Craig), outro sobre uma liga de beisebol dos anos 1970 e o drama de guerra AMERICA'S LAST PRISONER OF WAR, inspirado no caso de soldado sequestrado pelo Talibã.  Nada vingou.

 

O segundo motivo que joga holofotes em Field é sua assiduidade no Oscar.  Ele só dirigiu três longas, e todos foram indicados. ENTRE QUATRO PAREDES (2001) disputou as categorias de melhor filme, roteiro adaptado (pelo próprio cineasta a partir de conto de Andre Dubus), ator (Tom Wilkinson), atriz (Sissy Spacek) e atriz coadjuvante (Marisa Tomei.  PECADOS ÍNTIMOS (2006) concorreu em atriz (Kate Winslet), ator coadjuvante (Jackie Earle Haley) e roteiro adaptado, assinado pelo diretor com Tom Perrota, autor do romance original, CRIANCINHAS.  Agora, TÁR briga por seis troféus: filme, direção, atriz, roteiro original (do próprio Field), fotografia (Florian Hoffmeister) e edição (Monika Willi, colaboradora de Michael Haneke).

 

Por si só, o retorno de Field geraria burburinho no âmbito cinematográfico, mas TÁR provocou uma quantidade desproporcional de conversas para um fracasso de bilheteria (custou 35 milhões, somando o marketing, e arrecadou US$ 16,8 milhões).  "É possível que o discurso em  torno do filme seja tão interessante quanto o próprio filme", escreveu Charlotte Higgins, a redatora-chefe de Cultura do jornal britânico The Guardian, antes de resumir várias interpretações conflitantes: "Que é uma deturpação vergonhosa do campo da música clássica: que tudo é muito real: que tudo é muito surreal; que carrega um peso intelectual raro no cinema; que não é tão esperto quanto pensa; que não se trata de regência, mas sim de poder; que não se trata de poder, mas sim de narcisismo; que se trata de um choque de ética entre as gerações; que é sobre o feminismo da terceira onda; que sua personagem, em toda a sua antipatia, é arrebatadoramente complexa; que sua personagem é irremediavelmente odiosa; que é uma anatomização fascinante da cultura do cancelamento; que na verdade é um filme retrógrado com um objetivo amargo na política identitária".

 

Pode-se acrescentar outros temas e outras queixas levantados por TÁR, como a possibilidade ou não de se separar o artista da obra, sobretudo à luz dos debates sobre diversidade de gênero e representatividade étnica; as semelhanças marcantes, nos dados biográficos, e diferenças gritantes, na conduta pessoal, entre a personagem central e a maestra Marin Alsop; e o fato de que essa protagonista é uma predadora sexual, que usa a sua posição hierárquica e seu status artístico para levar para a cama, enquanto na vida real a grande maioria dos que se valem disso para cometer abuso são homens.  "Depois", prossegue Higgins, "há um extenso debate online dedicado a decodificar seu misterioso ato final. Há algo empolgante em um filme que é tão aberto, que demanda tanta discussão".

 

MAHLER

 

O título toma emprestado o sobrenome da personagem encarnada por Cate Blanchett, Lydia Tár.  Regente da Filarmônica de Berlim e uma das raras artistas EGOT (ganhou um Emmy, um Grammy, um Oscar e um Tony, o principal prêmio do teatro nos EUA), ela é a maior estrela da música erudita contemporânea – e sabe disso: sua arrogância é um terreno vasto para Cate Blanchett desfilar seu talento.

 

Quando a conhecemos, a protagonista está nos bastidores do New Yorker Festival, onde será entrevistada pelo crítico Adam Gopnik, vivido pelo próprio ensaísta da revista nova-iorquina.  Naqueles instantes enquanto Lydia aguarda ser chamada ao palco, Blanchett começa a exibir as contradições da sua personagem.  Está ali a presunção, mas também se vislumbra uma insuspeitada insegurança.  Estão ali a postura rigorosa e o olhar frio, mas também se percebe um pendor à impulsividade.

 

A maestra está lançando um novo livro, Tár on Tár, e tem o projeto de gravar a desafiadora 5ª Sinfonia de Gustav Mahler (1860-1911), completando o ciclo de um dos maiores compositores do período romântico.  Antes de a conversa virar um longo monólogo sobre o papel do tempo na música, Gopnik diz que não pôde deixar de observar Lydia "se encolhendo" durante a apresentação e pergunta se foi por ter esquecido alguma façanha ou se é por ela ter autoconsciência das incríveis e variadas conquistas.

 

Puro jogo de cena: pouco antes, vimos a assistente da regente, Francesca (Noémie Merlant), recitar, silenciosamente, todas as palavras ditas por Gopnik.  Lydia Tár é uma mulher no controle absoluto de tudo e de todos, o que inclui sua esposa, Sharon (Nina Ross), primeira violinista da orquestra e mãe de sua filha, Petra, e o banqueiro profissional e maestro amador Eliot Kaplan (Mark Strong).  Mas o castelo de Lydia não tarda a começar a ruir, implodido por suas próprias vontades.

 

Para mostrar a jornada de glória e autodestruição da protagonista, Todd Fields evita os típicos caminhos hollywoodianos.  O diretor pega desvios e, em vez de oferecer cenas à la cartão postal, em que tudo está dado, nos convida a explorar detalhes para construir o quadro completo – repare em uma certa bolsa vermelha, por exemplo.  Lydia Tár é nossa guia (Cate Blanchett está presente na grande maioria dos 158 minutos de duração), mas essa é uma guia não muito confiável e que nem sempre conduz o nosso olhar – volta e meia, é como se o espectador estivesse espiando, flagrando um momento de intimidade, de vulnerabilidade, de crueldade.

 

  

Fonte:  Zero Hora/Ticiano Osório [ticiano.osorio@zerohora.com.br] em 05/03/2023